Por Eduardo Prado
Para preservar o tom coloquial de nossa conversa, optei por desconsiderar a necessidade de concordância pronominal que, em português, formaliza demasiadamente. Encontrei Maitê generosa, franca, amiga, espontânea. E gostaria que tudo isso permanecesse vivo em nosso diálogo. (Eduardo Prado)
Um dia, num belo final de tarde, algumas pombinhas marcaram um encontro numa árvore da Cinelândia. Na hora marcada chegaram todas, menos uma. Horas depois, quando ela chega, impacientes e irritadas as outras indagam a razão do atraso. E ela responde: "A tarde estava tão linda que eu resolvi vir a pé." Etimologicamente, seduzir é desviar do caminho. Você já desviou ou foi desviada por alguém do seu caminho? Sedução como desvio tem algum significado para você?
Olha, a gente seduz porque precisa do outro. A gente precisa dessa comunicação. Eu preciso de você. Por natureza. O eremita é uma exceção. A sedução é um meio, portanto. E dentro disso, se ela cumpre o objetivo, é claro que comove a gente. Como um fim em si mesma, ela é uma perversão. Seduzir pelo prazer narcísico de seduzir é banal. E ocorre quando as pessoas não estão sintonizadas. Se você está me sentindo saberá o momento de me seduzir. E isso é sinal de que já está havendo, então, algum tipo de troca em algum patamar do nosso espírito... e essa troca é que promove o desejo de você me seduzir. Quando a sedução é adequada existe harmonia.
A sedução faz parte então do ser humano... Você nunca planeja a sedução?
Acho que a gente é induzido à sedução desde o dia que nasce. O bebê é o único animalzinho que, se não tiver a mãe do lado, morre. Ele aprende que quando chora provoca algo na mãe, e que então ela lhe dá atenção. A sedução começa como um instinto.
Quem não chora não mama...
Quem não se manifesta não recebe. Então ele aprende a usar a sedução. Depois eventualmente a elabora e pode até planejá-la. Mas, de início, parte de um instinto que dá resultado. Ele vai percebendo que esse chorar pode ser usado em outras situações. E assim vai a vida inteira, até tornar a sedução uma coisa mais sofisticada na vida adulta.
Acho que a sedução não pode ser julgada isoladamente. Apenas seu objetivo pode sofrer um julgamento de valor. "Ela me seduziu praquilo." Aí pode-se achar que aquilo é uma coisa horrorosa ou boa. Depende do senso ético de cada um... Mas a sedução, em si, não é boa nem ruim.
Antigamente, sedução era uma coisa charmosa, amorosa. Hoje, ela está ligada à corrupção. O sedutor é aquele que não fala a verdade...
Ela ficou pejorativa, quase cínica, né?
No entanto, num momento de extrema sinceridade, a gente tem a impressão que não existe sedução presente.
Mas um momento de extrema sinceridade é extremamente sedutor. Em si. Uma vez, li um artigo e depois escrevi a respeito, de como apenas 20% da comunicação humana é feita através de palavras, mesmo quando se está falando. Os outros 80% são feitos de mímica facial, de entonação, de silêncios, de mímica corporal, de gestos, olhares... Se você estiver aberto para toda esta outra gama de possibilidades de comunicação, você vai perceber se a minha sedução está em sintonia com você ou não. Se estiver, aí, sim, ela é bela, pura e não pejorativa.
A gente está tão embrutecido hoje em dia, com todos os impulsos da vida moderna, que a gente seduz às vezes de forma maladroite, capenga, grosseira. Mas se houver sintonia atinge-se o fundo do ser. Eu não preciso esconder de você que preciso de você. Nós precisamos uns dos outros. Se preciso te seduzir para uma idéia, para você fazer um trabalho comigo, que isso seja mostrado de forma clara. A sedução como um joguinho é muito chata!
A sedução te ajudou nos teus sofrimentos?
Quando se passa por situações de sofrimento compacto e brutal, o que pode ocorrer é um enorme ódio imobilizador. Porque o ódio é imobilizador num primeiro momento. Ele te deixa meio catatônico. A situação já aconteceu e não há mais o que fazer a respeito. Então você está sentindo ódio por uma coisa que já foi. Não é construtivo, não leva a nada. É mais sensato tentar compreender, aceitar: eu senti ódio nesta situação, mas pronto, acabou. Sentir rancor, como uma coisa permanente, se reportar a um determinado sofrimento cada vez que uma situação paralela ocorre na tua vida, é se atolar no incontornável.
Mas quem se melancoliza não pensa assim.
Tem gente que é suicida. Você não tem amigos que são suicidas em potencial? Que você sabe que um dia aquele cara vai se matar? Eu nunca pensei em me matar. O artista é um ser livre porque ele tem a possibilidade de catarse. Ele pega o momento de sofrimento, seus defeitos físicos, suas agruras, todas as situações insatisfatórias da sua vida e transforma em música, em poesia. Ele joga tudo num outro personagem, cria um outro personagem que não foi feito da mesma situação e aquilo serve. E assim ele se purga do seu próprio fardo. Isso é fascinante: livrar-se do sofrimento através do próprio ofício. Ter a capacidade de transformar para liberar. Acho que a única coisa que acontece no final de uma análise é você ter certeza que se a tua vida empaca, você sai daquela coisa. Porque a tua vida vai continuar empacando e você vai continuar com as mesmas neuroses, mas você sabe que se livra delas...
Perde o medo do conflito...
Perde o medo. E, de alguma forma, se torna meio artista, no sentido de poder transformar o sofrimento. Tem gente que consegue fazer isso logo da primeira vez... Eu acho mais fácil quando se tem impactos intensos. Porque com pequenos sofrimentozinhos tende-se a ficar preguiçoso, nostálgico, melancólico, com auto-piedade, que é um sentimento muito besta e inútil. Agora, quando não tem jeito - se eu não sair eu morro, e eu não quero morrer -, então eu arranjo um jeito e saio.
Como o teatro te seduziu?
Eu tinha um interesse especulativo pelas artes de maneira geral e comecei a trabalhar em teatro meio de passante. "Eu estou passando e o teatro é mais uma experiência na minha vida." Aí fui mordida pela mosca numa determinada altura. Mas demorou um tempo para reconhecer, dentro de mim, que esse era o caminho que queria seguir de fato. Acho que o teatro pra mim foi até terapêutico. Quando comecei a ser atriz, sobretudo na televisão, me dei conta que se tem que ter um acervo de emoções muito à flor da pele. São vinte cenas por dia. Numa você tem que ser deprimida, na outra histérica, na outra rindo, chorando, aterrorizada, enfim... É isso, de cinco em cinco minutos vai mudando. E não há tempo de concentração para se chegar naquele momento. Você já pega a cena lá do cume. Eu estava com as minhas emoções bastante bloqueadas naquela época. E nem sabia disso. O exercício desse trabalho, o exercício de sentir através dos personagens representados, facilitou a saída dessas emoções, deixando que elas aflorassem. E aí percebi que eu também sentia essas mesmas coisas que precisava para representá-los. O afastamento do medo provocado pela vivência através de um personagem fez com que eu deixasse meus sentimentos acontecerem dentro de mim. E então, perdi o medo de sentir.
Você tem medo de ser seduzida?
Não, eu gosto quando alguém me seduz. Quando consigo me encantar por uma pessoa, um projeto, quando me apaixono, isso dá motivação, energia, pulsação, vontade, o olho brilha. Sou ingênua e até fantasio situações que não são nem tão fantásticas quando elas se me apresentam. Mas eu floreio de tons bem fortes, para ficar mais encantada. Depois posso me decepcionar... mas faz parte né? Sei, a essa altura do campeonato, que faço isso: "Lá vai você de novo, Maitê, querendo se encantar com um negócio que não é nada encantador." Mas só o tempo que passei encantada já pagou o custo da decepção lá no futuro. Demorei um mês para preparar a festa e ela só durou duas horas! Mas fiquei um mês tendo prazer. E isso é delicioso...
O que está te seduzindo no momento?
No momento, estou seduzida pela idéia de aproximar a minha persona do personagem que tenho pra uso externo. É claro que no convívio social não posso ser exatamente tudo que sinto, porque vou me dar mal. Mas quero juntar, cada vez mais, o espontâneo do adequado. Quero cada vez mais diminuir o jogo, limitá-lo ao essencial. Se estabeleço uma relação pela metade com você, se eu estiver com um oitavo do meu ser aqui presente, nós vamos viver uma relação insatisfatória também para mim. Você vai conhecer um oitavo de uma coisa que, quando inteira, sei que é interessante. Eu gosto da minha pessoa. Se você puder absorver mais, é claro que vai dar mais também. Porque vai estar convivendo com uma pedra mais bruta, mais do jeito que é, do jeito que eu sinto, de um jeito espontâneo, genuíno. Aí se estabelecerá a possibilidade de uma relação realmente interessante. Mas sei que tenho que ir devagarinho. Porque quebrar a cara quando você está tentando ser puro é muito doloroso. Se você está sendo leviano, não tem importância, é o troco que lhe deram, você mereceu. Sei que isso parece utopia, ingenuidade. Mas é o caminho meu, interno, que vai dar satisfação nos meus relacionamentos. Quero me vestir com o nu.
Mas a gente está sujeito a momentos de solidão e esses momentos geralmente precipitam coisas. Você pode encontrar a outra pessoa num momento que não é o dela...
Você olha e vê...
Talvez não seja tão simples assim. E tem um fator complicador: é tão difícil ser rejeitado como ser aceito.
Tem uma coisa complicada que é assim... Às vezes a gente não investe com todas as armas, porque, se fracassar, o fracasso é muito maior. Se o investimento for parcial, aí eu tenho uma desculpa lá no final. Eu digo: "Também eu só dei metade de mim... foi por isso que fracassei." Aí eu fico com uma desculpa para a dor eventual... Mas, ao mesmo tempo, ficar com esse medo não é gostoso. É melhor você ir devagarinho, sem ansiedade. Estou tentando fazer isso. Posso quebrar a cara, mas o percurso é agradabilíssimo. E a possibilidade de não quebrar a cara é ótima! Porque aquela pessoinha de quem você gosta tanto, e que é você própria, está podendo se manifestar...
Esse teu projeto de aproximar tua persona do teu personagem é altamente sedutor. Se com isso você pretende dizer que deseja ser autêntica, tudo bem. Mas, em outro sentido, o projeto é inviável. Porque a representação faz parte de nós. Não podemos viver nesse mundo se não for através da representação. Cada um de nós é uma representação de si mesmo, aos próprios olhos. A rigor, nunca podemos saber quem somos porque essencialmente somos divididos. E essa divisão entre persona e personagem é o que nos permite viver dentro da realidade. Eu trabalhei num hospital só de mulheres. Eram mais de cem mulheres, todas psicóticas, e eu era o terapeuta delas. Meu trabalho consistia exatamente em fazer teatro com o que emergia na hora. Porque o drama do psicótico é que ele vive no real e não num mundo de representação como o nosso. Então minha função era tentar trazer para elas, de novo, a possibilidade de representar o que sentiam para poderem inclusive entrar em terapia. Algumas coisas eram muito emocionantes. Elas diziam, por exemplo: "Hoje, a gente quer fazer o corpo humano." Então cada uma fazia uma parte desse corpo, baseado na gíria: uma era o "braço direito", a outra, o "bicho do pé", e assim por diante. Trabalhávamos num pátio de terra, onde cada uma se posicionava de acordo com o seu papel, formando um enorme corpo. Então eu dizia: "Puxa, tô com coceira na perna esquerda! Eu queria que o braço direito me coçasse." Aí uma mulher se levantava, dava a volta e coçava a outra... Então era lindo, no sentido de reconstruir a possibilidade da representação. O que quero dizer é que a realidade é uma representação do real.
Enquanto você estava me dizendo isso, me lembrei que ontem tive uma conversinha no camarim que era assim... A gente estava relembrando aquelas aulas do tablado e de como virar ator e tal coisa. Aí vem o mestre e diz assim: "Sinta que você é uma sementinha e essa sementinha cresce e vira uma arvorezinha, e aí você vai sentido essas coisas todas... e você tem o seu tempo." Então fica aquele bando de bebezinhos fazendo-se de sementinhas. Chega uma hora que a maioria acabou, mas ainda tem um sujeito lá que não acabou e que continua sentido-se sementinha que virou arvorezinha. Meu Deus! Aqueles gestos e todo mundo olhando, sem poder rir porque é proibido, porque é o tempo do outro... Aí hoje alguém me contou que o Perfeito Fortuna tinha outra técnica. Que ele também fazia a sementinha mas que todas as pessoas eram a sementinha, partículas mínimas da sementinha, e o coletivo é que criava a sementinha, e o coletivo é que criava a árvore. Então não tinha esse negócio de acabar sozinho... Não tinha um filho da mãe lá atrás que acabava antes e ficava olhando. E tinha também aquela história: "Você está vendo um pôr-do-sol. Aí o sol vai subindo e subindo e... sinta isso!" Aí ficam aquelas caras de quem está sentido o pôr-do-sol, né? Extremamente vergonhosas, amarelas, icteríticas. Tem sempre um sujeito com cara de pôr-do-sol, enquanto um outro, que já abriu os olhos e não está vendo pôr-do-sol nenhum, fica olhando para ele naquela situação lastimável. E quando isso é feito no coletivo como você propôs, aí é legal porque dá pra soltar mesmo. Dá pra experimentar uma sensação que não se experimenta normalmente. Eu sou um braço dessa árvore. Se você for o outro, então a gente acaba junto.
Nós criamos o hábito de pensar que representar é coisa de personagem e viver é coisa de persona. Neste sentido, minha vida se opõe ao meu teatro. Acho isso ingênuo. Porque mesmo quando nos olhamos no espelho, representamos. É impossível alguém se ver. Não porque o ideal seja o de que possamos nos ver. Mas porque no momento em que nos víssemos no espelho, sem representação, estaríamos psicóticos.
A gente representa sim. Então eu represento a nível social, tenho um personagem pra uso social. E que não é o único não. Porque temos várias facetas. Então sinto que praquela pessoa é adequada essa faceta da minha personalidade. Isso não é hipócrita. É apenas uma coisa saudável do ser gregário que sou. Não acho uma hipocrisia eu ser de uma forma com você e de outra com fulano, e de outra com sicrano. Acho que é assim que se estabelece uma relação. Eu potencializo coisas em mim com você que não potencializaria com outra pessoa. Porque essas mesmas características irão te seduzir. Então eu tenho que saber e estar sensível e sintonizada na outra pessoa. Agora, acho que certas criaturas começam a ter uma capacidade de fazer isso num grau tão grande de elaboração que elas esquecem o que está acontecendo dentro delas, mesmo a nível de sentimento. Tipo: eu sei ser adequada com esta faceta do meu ser. Mas essa faceta do meu ser, que existe de fato, não está tão presente neste momento como algo que está vindo lá de dentro. E então corro o risco de nem mais perceber o que me é mais profundo. Não acontece isso, às vezes? A gente está representando uma fatia da gente, que é verdadeira, mas ela está em discordância com algo muito mais intenso que vem de algum lugar mais recôndito, mais profundo e essencial.
É verdade. Mas o que eu queria dizer é que uma pessoa que não representa está doida, vive no real. Porque a essência do ser humano é a representação.
É querer estabelecer contatos. E não tem fuga possível, não tem jeito. Posso virar um ermitão, mas o ermitão é uma pessoa perversa no sentido de que a perversão é uma coisa em que se insiste, e só se faz aquilo. Eu tive contato em minha vida com pessoas que foram diagnosticadas como loucas. E eu sei que elas não eram loucas. Eu tinha uma vivência prévia com estas pessoas que me mostrava que elas eram perfeitamente capazes de lidar com o mundo. Agora, chegava um momento em que tudo ficava tão estressante que a opção, não intencional, mas a opção única e plausível para que elas não se matassem era a loucura. Ou me mato ou viro um "louco". Elas viraram loucas para pararem de representar, que era muito penoso. Depois de um certo tempo, conseguiam voltar a conviver com a realidade.
Existem pessoas que são tidas como loucas, não têm como sair daquilo, e ficam confinadas a vida inteira. Como isso deve ser de certa forma confortável, você não precisa se expor a todas as adversidades da vida social - você fica lá. Porque se alguém não tem mais ambições a nível social, se satisfaz com aquilo mesmo. Talvez então não se tenha que representar, é relaxante. Um mulambo, um sujeito desses que está aí pela rua, que já perdeu todas as esperanças, que arrebentou com a família dele porque virou alcoólatra e a família o enxotou e os filhos o detestam, etc... Qual a esperança que este homem tem? Ele não tem mais nenhuma visão a nível político e social e não se crê interessado em nenhum movimento dentro do âmbito social, de se fazer aceito, querido e bem-sucedido. Quando ele pode só ser, aí fica categorizado como louco.
Mas mesmo esse homem ainda representa para si mesmo. E mesmo o ermitão leva a cultura dentro dele.
Ele tem o repúdio da cultura e age compulsivamente contra o mundo externo. Ele se retrai. Então é uma representação. Ele está reagindo e a reação implica numa ação interior.
A representação a que me refiro é a de se viver num mundo de realidade, ou seja, num mundo codificado. Eu vou pela rua e sei que o sinal vermelho é pra parar, verde é pra seguir. Se colocarem, de repente, um roxo nesse sinal, eu me psicotizo naquele momento, porque fico sem código orientador.
Claro. Eu tinha uma coisa quando era adolescente que era assim... Eu morava em Campinas e tinha o hábito de ir andar no mato. Andava dez minutos de carro a chegava a um lugar completamente indevassado, fazendas lindas e desabitadas... Parava o carro em algum lugar que achava bonito e começava a andar. Aí eu andava. E andava. E andava... Chegava numa montanha e olhava a montanha. Eu queria saber o que estava atrás daquela montanha. E descobria que atrás daquela montanha tinha outra montanha. E assim por diante. Era uma compulsão. Um dia encontrei uma mulher no meio do nada. Ela me apareceu de repente e foi chegando logo com intimidades, aproximando-se como se já nos conhecêssemos há vinte anos: "Mas que bom que estou te encontrando aqui. Por que você não vem na minha casa? Eu tenho uns tomates lindos que acabei de tirar do pé. Você poderia ir na minha casa pra comer esses tomates." Ela não era doida, era purinha, natural, primitiva. E me disse: "Sabe o que é, eu tô querendo ir pra cidade porque quero ver como é que é esse negócio de cidade. Porque eu tô muito preocupada: lá tem carro, tem rua, e um monte de coisas, e minha filha tá querendo ir prá lá, prá ser babá, e a cidade é um lugar muito perigoso." Eu estava com a mulher do meu pai, que era uma pessoa essencialmente urbana, e o que eu estava fazendo era mostrar pra ela o meu mundo. E ela estava apavorada, com pavor de cobras e bichos e aranhas e buracos, com medo de tropeçar e quebrar o tornozelo. E eu falava: "Sônia, relaxe. Ande olhando pro horizonte. Olhe pra frente. Se você cair no buraco, o máximo que pode acontecer é você torcer e tornozelo. Mas e daí?" E então me defronto com uma mulher que está exatamente com o mesmo problema, mas em relação à cidade.
Ou seja, não importa qual seja o código, mas tem que ter um código.
Agora, conseguir abranger todos os códigos eu gostaria. Não vou conseguir nunca, é claro. Mas tenho muita curiosidade por isso. Por isso acho que sou atriz. O prazer de decodificar as vidas alheias e de jogar a minha emoção, a minha vivência mais idiossincrática, dentro daquela pessoa ali. Pessoa que é totalmente diferente de mim mas que, em outras circunstâncias, sentiu a mesma emoção que senti... Então eu sou igual a ela. Posso achar que ela é desprezível, que aquele personagem é um escroto, um assassino, um pária da sociedade... mas ele sentiu exatamente o que eu senti, em outra circunstância... Então eu posso fazer aquilo, sei como é isso, sei como é esse sofrimento. As coisas não são em si. O cara não é um assassino. O sujeito não é um marginal. Ela optou por isso num determinado momento. Mas todos os sentimentos que ele tem, eu tenho igual. Posso me identificar com ele. Posso perceber toda a motivação que desembocou na ação final. Posso até saber que eu não agiria da mesma forma, mas compreender eu também posso.
Você pode porque está inserida no mesmo código social. Um assassino e um cirurgião podem ser até semelhantes neste sentimento, mas praticam cortes diferentes. O que aconteceu com um e o que aconteceu com o outro? O que aconteceu com Mozart e o que aconteceu com Salieri?
As ambições eram idênticas, mas a propulsão era diferente. Alguma coisa dentro da alma deles e do que havia de personalíssimo dentro de cada um... É por isso que o que interessa mesmo no ser humano é o que ele tem de mais pessoal. Eu quero ver o lado doente. Quero que você me abra a tua enfermaria. Abriu? Então está bom. Se eu aceitar a tua enfermaria, nós vamos estabelecer uma relação tão plena que nunca houve nada mais instigante. Tenho algumas amigas que me dizem que quando têm relacionamentos sexuais com certos homens sentem que eles são todos meio doentes. Porque têm fixações e uma única forma de agir sexualmente, de gozar, de ter uma ereção, de conseguir prazer. Não se manifestam perante o outro de uma forma aberta: "Estou tendo prazer com você." É sempre uma coisa retraída.
É um ritual...
É um ritual. Muitos precisam se masturbar. Se masturbam sozinhos para depois conseguirem uma ereção. Porque esta reverência eles não prestam àquela mulher. Sobretudo quando ela é admirável.
Uma mulher admirável é perigosa para um homem.
Mas se fosse uma putinha qualquer... Acho que esses homens só gostam de transar com mulheres que não conseguiriam jamais admirar. Aí, então, o prazer sexual é flamboyant. A coisa toda que flamboy vem sem problema, sem inibição. Mas quando se deparam com uma mulher incrível... Eu não acho que Schopenhauer esteja equivocado em certos conceitos. A mulher é um ser parideiro mesmo. Eu sou uma fêmea que vim pra cá para parir. Eu, Maitê Proença, tenho dificuldades nessa área, mas quero sentir que sou capaz de parir. Porque tem um instinto dentro de mim que me diz que eu preciso parir uma criatura. Então, nesse sentido, Schopenhauer está certo. Não sei porque falei nisso. Acho que estou ficando brava.
Em geral, os homens precisam depreciar as mulheres para poderem ter prazer sexual. Esse é o sintoma social que Freud detectou há quase 70 anos atrás. O que se passa é que uma mulher que se apresenta para um homem como tendo tudo - bonita, rica e feliz - imprime, no seu inconsciente, a sensação de que ele nada tem a lhe oferecer.
Dentro dos padrões ocidentais...
E se ele não tem nada a oferecer a essa mulher, se a ela nada lhe falta, ela é, em seu inconsciente, um homem também. Então ele precisa fazer com que falte algo a ela para torná-la feminina e ele poder se construir como homem. É daí que vem a necessidade de depreciá-la.
Através desses movimentos todos de libertação da mulher que estiveram em voga nos 70 e que agora caíram de moda um pouco, a mulher ficou um ser agressivo mesmo. Porque ela fez isso de modo compulsivo e sem a doçura que a fêmea tem.
Para mim, o feminismo é uma tentativa de corrigir essa depreciação no nível social, onde o sintoma se apresenta. E aí é que está o engano básico. Porque embora ele se apresente no social, esse sintoma é inconstante e passa pela falta de elaboração que homens e mulheres precisam fazer de suas diferenças. A opressão de um sobre o outro é sempre neurose, antes de ser um sinal de injustiça social.
Então eu tenho que me curvar a isso. Eu sou um ser diferente sim. Fui feita pra parir e tenho uma coisa diferente da tua, que é, por exemplo, a da fêmea na fauna. A fêmea é super arisca e alerta porque tem que saber quando vem vindo uma cobra, um bicho qualquer que vai atacar seus filhotes. E a mulher tem essa coisa de estar alerta. Tenho amigos, empresários, que trabalham em áreas que precisam em alguns momentos de um insight: "Que rumo que tomo?" E eles vão perguntar pra mulher. Porque ela tem essa coisa intuitiva de quem está sempre arisca e alerta. E sabe intuitivamente... talvez não saiba responder de forma lógica, mas ela tem uma percepção absolutamente inelutável, ela sabe que aquilo é. Ela pode não saber o por quê, mas ela está percebendo o macho dela, está percebendo aquele homem com todas as suas aflições. Ela viu tudo, conhece o contexto das coisas, e então faz um resumo intuitivo e diz: "É assim que tem que ser." E ele vai lá e dá certo.
Mas a intuição não é uma característica exclusiva da mulher. pode acontecer o inverso. Você vai pro teu homem e fala: "Puxa, tá me acontecendo isso e isso" e ele te diz: "Vai nessa."
É verdade. Mas os caminhos são outros. Não estou depreciando a coisa masculina não. Apenas estou dizendo que os caminhos precisam confluir.
Porque habitualmente é dito que a mulher está no mundo mágico e o homem é racional. E isso é uma besteira.
Uma besteira absoluta. Eu preciso sim, de uma pessoa que bote os meus pés no chão de vez em quando. Porque eu tenho a minha intuição funcionando e ela serve em alguns momentos. Mas tem horas que a coisa objetiva e prática me é imprescindível. E ela não funciona espontaneamente dentro do meu ser. Então eu preciso perguntar pro outro. Eu preciso dele sim. Eu exponho meu ser intuitivo pra ele e, a partir disso, ele me dá um caminho racional, direcionado, com opções. Aí eu boto a minha intuição pra funcionar de novo. Mas foi ele que me elucidou, me esclareceu tudo. Eu preciso do meu parceiro masculino. Se ele está lá, de prontidão, e eu puder lançar mão dele na hora que preciso, é muito mais fácil e rápido. Porque ele também está interagindo com a minha intuição. Ele conhece aquilo que foi pra ele do meu sentimento, minha subjetividade. Então quando estou com uma dúvida horrorosa e, embora minhas antenas femininas me indiquem a direção, eu não sei como ir por ali sem fazer besteira, ele me discrimina tudo, discerne sobre aquilo de uma forma tão clara que, pô!, eu preciso daquele homem. Eu preciso dele, eu não sei fazer as coisas sozinha... Não fui feita para fazer as coisas sozinha, não gosto!