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Revista OQ

11/2005
 

"Eu nem sou eu nem sou outro, sou qualquer coisa de intermédio."

O profundo azul dos seus olhos não deixa ninguém indiferente. Sempre teve o mundo inteiro no horizonte e ao longo da sua vida já visitou mais de 30 países. Confessa já ter "trocado" de pele mil vezes. Uma mulher descontroladamente encantadora, que encontrou na escrita uma nova forma de expressão.
Sandra Torres Sousa

OQ: Fale-nos um pouco do seu percurso, desde a infância à consagração.
O que mais a fascina: o teatro, o cinema ou a televisão?

Maitê: Gosto dos três veículos. E gosto de variar. Se o personagem for bom e a história valer a pena de ser contada, adapto-me a qq das três formas. Aliás esta é uma característica do ator brasileiro.

OQ: Ao longo da sua carreira de atriz tem interpretado textos alheios. Quando decidiu escrever o seu próprio texto?

Maitê: Não tenho memória do momento em que comecei a escrever. Sempre tive uma relação epistolar com a escrita. Escrevia muitas cartas, queria traduzir o mundo pra quem estava longe. A escrita é a possibilidade de atribuir uma nova forma ao que se quer expressar. Preciso sentir prazer no que faço, essa é sem dúvida a regra. Ou arranjo uma forma única de me expressar dentro da escrita e faço isso com a seriedade (mesmo que bem-humorada) e a beleza que a literatura merece, ou então não faço.

OQ: Essa relação epistolar com a escrita, é fruto da sua educação?

Maitê: Eu venho de uma família de intelectuais, de gente que escrevia, que usava as palavras. Na minha casa existiam inúmeros verbos e 800 palavras para fazer um comentário apreciativo. Existe uma tendência para reduzir a língua a tal ponto que com três ou quatro palavras se resolve o problema. Na minha casa nunca foi assim. Eu estudava numa escola estrangeira, mas quando chegava a casa falava-se um nível de português muito bom. Isso influenciou sem dúvida a literatura que faço hoje.

OQ: Quais as suas referências literárias?

Maitê: Li todos os clássicos e ainda bem, porque talvez hoje não os lesse. Aos 15 anos li "Guerra e Paz", li os russos, os franceses, ingleses, todos! Era estimulada a ler. O meu pai era fanático por Shakespeare e fazia-me decorar trechos de peças que depois declamava para ele. Era muito divertido porque em troca ganhava presentinhos. Era uma conquista, tinha um sabor especial, além do facto de que depois que você aprende, descobre que é muito bom saber.

OQ: Fale-nos um pouco do seu primeiro livro.

Maitê: "Entre Ossos e a Escrita" reúne as crónicas publicadas na revista "Época", entre 2003 e 2004. São 50 textos que procuram surpreender pela diversidade, qualidade e bom humor. E o humor é para "driblar" a vida, porque sem ele a coisa não anda. Os temas surgem a partir da minha observação do mundo.

OQ: As suas crónicas são um jogo de confissões e invenções?

Maitê: A escrever, tal como a interpretar, a pessoa expõe-se. As minhas crónicas são sinceras, o que não transforma necessariamente a escrita num exercício de confissão. A sinceridade de quem escreve envolve impulsos e emoções mas também a capacidade de mentir e de seduzir. É uma mistura de verdade e mentira. O que realmente interessa é a cumplicidade entre autor e leitor.

OQ: No início do seu livro diz que fora de cena os actores dão entrevistas sobre a sua carreira, mas muitas vezes escondem o que lhes vai no espírito… A escrita é para si um acto de libertação?

Maitê: Tenho mais coragem para escrever do que para falar. Há certas coisas que eu, fechada no meu escritório, coloco de determinada forma que me parecem belas e novas, e portanto relevantes para serem mostradas. Mas sei tb que posso escrever o que quiser, e deixar no fundo da gaveta ou perdido no computador. Tenho um livro inteiro escrito que não vou publicar nunca. Muitas coisas que não sabia que tinha dentro de mim afloraram com a actriz, precisei delas para os personagens e elas brotaram misteriosamente. Esta é a beleza de ser ator, cavar de onde não há e descobrir que sempre houve - belo, heroico, vergonhoso ou desprezível - e ter a coragem de expor tudo isso. Já a escrita é um processo íntimo onde se faz mais ou menos a mesma coisa porém de forma intelectualizada. E onde depois das descobertas dá-se uma forma a isso com palavras, estilo, e bom gosto, para os que o possuem.

OQ: Onde encontra inspiração para escrever?

Maitê: Qualquer assunto pode ser transformado numa crónica. Não tenho propriamente temas predilectos. Falo de família, de outras culturas, do universo gay, de Bush, do terrorismo, da indústria da morte, de erros médicos, e de amor, muito amor, amores dilacerados, amores de toda sorte... E assim por diante.

OQ: Como é que lida com a sua exposição pública?

Maitê: Eu escolhi profissões que me expõem publicamente. E rôo os ossos de meus ofícios com o máximo de alegria possível.

OQ: A maturidade minimiza os obstáculos?

Maitê: Sinto-me mais confortável dentro de minha pele hoje do que há dez anos. E isso aconteceu um dia depois do outro. Caminho numa busca constante e de dia para dia vou aparando as arestas. Já fui muito impulsiva e ainda hoje o sou, mais do que seria conveniente - é uma característica que atrapalha um bocado. Por outro lado, gostaria de manter um pouco disso pela vida afora. Não tenho temperamento nem quero ser certinha e blasé, quero encantar-me com as coisas, manter a paixão acesa e o entusiasmo pulsando. Às vezes dói, mas... fazer o que? A vida tem disso! É só não ter medo de sentir medo poque ele passa, sempre passa. Depois vêm os benefícios trazendo alegrias supremas.

OQ: Concorda com a velha máxima: "o sonho comanda a vida"?

Maitê: Sempre que vou para o campo ou para uma vilazinha à beira-mar imagino que poderia tornar-me uma pescadora ou passar o dia em casa a fazer risoto ou a criar galinhas. Provavelmente nesse contexto ia ser bom escrever, entre um risoto e uma galinha, com o silêncio como cenário. Eu sonho com uma vida simples…Tenho muitos sonhos, entre eles este, que é recorrente, já que viajo muito e vou muito para lugares distantes, com culturas distintas, outros hábitos. Depois retomo minha vida como ela é, deixo esta idéia num canto... Mas ela fica ali no pano de fundo. Poderia criar outra vida totalmente diferente, fá-lo-ia tranquilamente.

OQ: Quais os projectos que está a desenvolver neste momento?

Maitê: Neste momento estou a participar na novela "A Lua Me Disse". No final de Junho acabei de gravar o novo filme de Guilherme de Almeida Prado, "Onde Andará Dulce Veiga", no qual interpretei o papel título. Paralelamente, tenho dado palestras pelo país sobre temas variados. Escrevi recentemente uma peça de teatro para duas atrizes, mas com 23 personagens. Participo como actriz e produtora. Chama-se "Achadas e Perdidas" e estreou em Outubro em turnê pelo Brasil. Para o ano a peça será exibida em Portugal.

OQ: Ao longo da sua vida já passou por mais de 30 países, entre Europa, África e Ásia. Que visão construiu do mundo?

Maitê: Apaixonei-me pelo mundo com suas diversidades. Adoro estar num lugar onde quem tem que se adaptar sou eu. Somos uns bichos corrosivos e destrutivos, mas com uma incrível capacidade de preservação, levantamos das cinzas qual Fênix. Há muita alegria e humor fora das "sociedades civilizadas". E tudo, tudo que há nesse mundo é possível de se compreender, basta querer.

OQ: Se tivesse de se definir, em algumas palavras ou mesmo recorrendo a um personagem, como se definiria?

Maitê: Preferia não caber em algumas palavras, mas vá lá. Sou impaciente, falo o q deveria calar, sou infinitamente curiosa, gosto de gente simples, de lugares estranhos, do cru e do altamente sofisticado, gosto da verdade escancarada, e tento todo dia, cada dia mais, viver na verdade.

Perfil

Maitê Proença nasceu em São Paulo. Ao longo da sua infância e adolescência estudou em Campinas, São Paulo e Paris. Ao contrário do que se possa pensar, a opção pela carreira de actriz foi inesperada. Viajou pelo mundo e viveu no ápice da sua autenticidade. Teve a primeira experiência com artes cénicas em Paris, durante uma das suas viagens. Em 1980, tornou-se actriz, afirmando-se como intérprete premiada no cinema, no teatro e na televisão. Filha de pais intelectuais, a actriz esclarece que não se tornou escritora por acaso. Desde 2003 que mantém uma página na revista brasileira Época, na qual publica as suas crónicas. Actualmente, vive na cidade do Rio de Janeiro com a filha Maria, a menina da sua vida.