A A A
Quero cada vez menos

Revista simplesMente - Setembro/2012

Texto: Luciano Dias
Fotografia: Vicente de Paulo


A atriz, que tem a fortuita combinação de beleza e inteligência, diz que realimenta o espírito e a capacidade de criar em viagens físicas — as que atravessam fronteiras de países — e mentais, as que são proporcionadas por um bom livro ou um pequeno prazer, como caminhar ou dar um mergulho no mar.



Maitê Proença, uma das atrizes mais lindas da dramaturgia brasileira — incluindo cinema, teatro e televisão —, é, também, uma mulher muito inteligente, culta e determinada. Nascida em São Paulo, criada em Ubatuba com passagem, na adolescência, por Paris, na França, e radicada no Rio de Janeiro, ela acabou por tornar-se um híbrido cultural, uma combinação especial de características variadas e harmonizadas em uma pessoa só. Aos 54 anos, a sempre belíssima Maitê é também escritora — tem quatro livros publicados —, blogueira e mãe dedicada da jovem Maria, de 21 anos. Até agosto, viveu também a esposa oprimida Sinhazinha, na segunda adaptação da TV Globo para "Gabriela Cravo e Canela", novela baseada no romance de Jorge Amado. Para se equilibrar diante das pressões de uma rotina diversificada, Maitê abraça um livro ou carimba o passaporte, é o que ela conta em entrevista exclusiva à simplesMente. Quando Sinhazinha sair de cena, assassinada pelo marido (José Wilker), a atriz também fará as malas: vai para Alemanha e Butão. É assim que Maitê se reinventa.

Autora de "Entre ossos e a escrita" e "Uma vida inventada", ela diz que viajar é quase uma necessidade vital. A juventude foi de mochilão e de descobrimentos por países da Europa, Ásia e África. No retorno ao Brasil, se fez atriz pelas mãos de Antunes Filho, um dos principais encenadores do moderno teatro brasileiro. Alguns capítulos depois, chegava ao estrelato na faixa nobre da vida cultural do país. Novelas, séries, filmes, peças, livros, programa de TV e crônicas construíram uma carreira de sucesso. Alguns de seus melhores momentos na TV são as minisséries "A Marquesa de Santos" e "D. Beja", que protagonizou na extinta Rede Manchete na década de 1980, além da professorinha Clotilde de "O Salvador da Pátria", da Rede Globo, na qual contracenou com Lima Duarte. Entre os vários prêmios que recebeu, um consagrava a nova carreira de dramaturga: em 2010, ela recebeu a condecoração APTR de melhor autora de teatro pela peça "As meninas".

A arte intensa não impede Maitê de viajar, seja pegando um avião ou deixando a mente transcender. Já se emocionou ao experimentar as religiões afro-brasileiras (candomblé e umbanda) e a doutrina espiritual do Santo-Daime, uma manifestação surgida na região amazônica baseada no consumo de um chá que leva ao êxtase. "Mergulhei fundo em vivências espirituais. Conheci momentos sublimes", diz. A filha única, nascida do relacionamento com o empresário Paulo Marinho, é foco central de atenção e realimentação espiritual da atriz. A sintonia fina com Maria é um presente para quem, como ela, perdeu a mãe aos 12 anos de idade. Margot Proença, professora de filosofia e secretária de cultura de Campinas, faleceu prematuramente, mas teve tempo de transferir para Maitê o interesse pela arte. Depois, ela foi estudar em um pensionato luterano e teve de ficar longe do pai, o promotor de Justiça Eduardo Gallo. Páginas dessa biografia acabaram por levá-la ao curso de psicologia, na PUC-SP. Mas a faculdade não foi concluída. Antes disso, ela trocou a teoria pela sala do analista. Cansou, resolveu os "perrengues da infância e da adolescência", como diz, e hoje passa longe de divãs. "Não faço análise, não aguento mais falar de mim", sentencia.

"As pessoas me contam episódios em que fui figura principal. Não lembro nadinha."

Viajar pelas letras é outro exercício que ela adora. Maitê lê muito, inclusive no trânsito, entre os 31 quilômetros que separam o Projac (estúdios da Rede Globo na zona oeste do Rio) e a casa dela (em Copacabana, zona sul), onde também tem um sofá preferido para leitura. Longe dos holofotes e da ficção, ela ativa sua mente e saber com aulas de literatura, história, música e arte contemporânea. Quer outra boa dica de aprendizado e exercício de harmonização interna? A caminhada. É caminhando na orla da Avenida Atlântica, em Copacabana, que ela "pesca" as idéias e organiza os textos mentalmente. Seu próximo livro é uma "reunião de peixes" capturados na internet. Maitê está trabalhando sobre textos e ilustrações de humor enviados pelos seguidores do seu blog, o "Mil Coisas". E também em seus próximos projetos: o livro coletivo "É duro ser cabra na Etiópia" e a produção da peça "À beira do abismo me cresceram asas", escrita pela atriz.

A memória de Maitê Proença para o trabalho é fantástica, fotográfica. Mas, no dia a dia, a atriz é gente como a gente: tem brancos quando tenta lembrar uma conversa, um fato. Em vez de ficar estressada com isso, entretanto, ela planeja chegar um dia à serenidade de apenas apertar o botão do "deixar rolar". A tarefa mais prazerosa para a atriz é a de ser mãe. E ela revela: gostaria de ter tido oito filhos. "Numa próxima vida, quem sabe?" Abaixo, a entrevista que Maitê deu à simplesMente:

Como a atriz, a escritora e a teatróloga, que você é, se relacionam? Essas múltiplas funções causam estresse?

Meus afazeres se multiplicaram (porque eu quis, ou foi acontecendo sem que me desse muita conta) e o volume de obrigações me atropela. Quando me vejo enrolada na trama que teci, dou uma freada, começo a ler mais, escolho um tema e estudo, ou faço uma viagem para focar em outros assuntos que não o trabalho. Mas quando percebo, já inventei um livro, uma peça, uma turnê, entrei numa novela enquanto reformo a casa, e ainda tem a parede que eu mesma resolvi pintar usando uma técnica nova...

Atuar exige muito de sua memória? Você utiliza alguma técnica ou exercício para decorar os textos?

Eu decoro por associação: um sentimento, uma palavra lembra a outra, traço relações. Nunca foi muito penoso, tenho facilidade. Minha memória só é boa pra textos de trabalho, de resto é uma tristeza. As pessoas me contam episódios em que fui figura principal, acontecimentos mirabolantes, e parece que estão falando de outro qualquer. Não lembro nadinha!

Você já teve "branco" alguma vez? Como fez para sair da "saia justa"?

Já tive branco até encenando peça escrita por mim. Em "Achadas e perdidas", uma noite, esqueci de tal forma, que tive que sair de cena e procurar o texto que estava na coxia. Só que, na escuridão, eu não o encontrava. A pobre da Clarisse Derziê, minha parceira em cena, ficou improvisando: explicava para a plateia o que ocorria e eles achavam que tudo era parte da encenação, não acreditavam e se acabavam de rir. Eu tensíssima lá dentro. Quando voltei, olhei pra Clarisse e disse: "Charlize, você é feia" (era o que eu havia esquecido). Clarisse olhou pra mim bem séria e falou como se fosse a personagem, "Você demorou esse tempo todo pra isso?" A plateia veio abaixo.

Acredita que a leitura ajuda a ativar o cérebro? Que tipo de leitura indicaria para exercitar a memória, o saber e a inteligência?

Para memória, se alguém souber que me dê a dica, por favor! Agora, ler é um bom hábito, diverte, distrai, ajuda a falar bem a língua, a especular sobre realidades distantes da nossa. E é uma experiência particular única. O campo florido descrito no livro é aquele que você inventar na sua mente, só você o verá daquela forma.

É uma leitora compulsiva? O que está lendo atualmente?

Sou uma leitora frequente. Agora estou lendo o livro do José Castello, "Ribamar", excelente por sinal. E também o "1421 – O ano que a China descobriu o mundo", de Gavin Menezes, e ainda o "Seu rosto amanhã", de Javier Marías, provavelmente o próximo ganhador do Nobel de Literatura.

"A vida é pequena, estranha, incompreensível. Mas a gente pode torná-la maior olhando para os lados..."

Costuma fica estressada quando está se desdobrando entre vários personagens da ficção e da vida real? O que faz para conciliar?

Quero tudo à perfeição, menos não basta. Portanto me estresso, é a sina dos perfeccionistas. Mas isso é falta de maturidade, hei de aprender a deixar rolar. Por isso viajo, para sair de mim, de minhas pequenas circunstâncias. E assim descansar.

Como é seu processo de criação como escritora? E como atriz?

Vou percebendo, anotando, juntando impressões. Andar me organiza muito, faço longas caminhadas e volto cheia de ideias, com o texto já estruturado. Mas se não sentar em seguida, e enfrentar a folha branca, tudo cai num vazio. Já como atriz, quando comecei tinha muito medo de me emocionar, não sabia mas tinha. Andei, andei, andei e um belo dia acordei sem medos. Eis que aqui estou pra fazer o melhor que posso. Agora eu posso! Hoje é só questão de compreender o mundo do personagem, escolher um caminho, e me jogar.

Já teve experiências nas religiões afro-brasileiras umbanda e candomblé) e também no Santo-Daime. Como essas experiências influenciaram suas emoções, espírito e mente?

Influenciaram bastante. Mergulhei fundo em vivências espirituais e experimentei a transcendência. Conheci momentos sublimes.

Segue alguma religião? Sua fé e sua espiritualidade ajudam no combate ao estresse e na busca do equilíbrio?

Eu ando afastada da prática religiosa e até da espiritual. Não sei bem por quê. E está bom também, pé no chão. É o seguinte, gosto da espiritualidade mas não ouso dar um nome ao lugar para onde endereço minhas preces. Já vivi experiências transcendentes, mas não me considero uma pessoa religiosa. Não acredito em qualquer ideia de Deus que eu mesma tenha conseguido formular. Hoje caí no mar às 8 da manhã, foi um momento divino.

O que costuma fazer para o seu bem-estar?

Não faço análise, não aguento mais falar de mim, bastam as entrevistas, que evito, com honrosas exceções. Massagens me aliviam muito, exercícios na hora são chatos mas surtem efeitos necessários.

Faz algo que considera luxo, como compras caras, viagens etc., quando está triste?

Fazer compras me deixa muito aflita. Aliás, tenho coisas demais, quero cada vez menos. Viajar, sim. Em julho, passei uma semana em Bayreuth, na Alemanha, para ver óperas e visitar um amigo de infância. Em setembro, volto ao país, a Kassel, para a feira de artes contemporâneas. De lá, devo seguir pro Butão. E no Natal penso ir com minha filha ao Sudão e à Etiópia. Enquanto isso, vou tentando botar minha última peça no palco (se der, faço também como atriz), e em uns três meses lanço o livro "É duro ser cabra na Etiópia".

Como é a sua relação com sua filha – e como concilia a mãe com a artista?

Maria sempre foi prioridade, isso era claro feito o dia. Com isso definido, era só me organizar em torno dela. Não achei nada complicado criar filho, nasci pra coisa, devia ter feito uns oito. Numa próxima vida, quem sabe?

Como é a sua rotina quando está gravando uma novela?

Tenho um motorista. Então, na ida para o Projac, organizo as muitas logísticas, por telefone, por e-mail. Com tudo feito, reviso os textos a serem gravados naquele dia, e se sobra um tempo, ainda leio. Bendito trânsito! Deixo de lado minhas aulas de literatura, de história, de música e de artes contemporâneas. Quando dá, retomo. Também ficam menos frequentes os fins de semana na serra com amigos. O pilates e a musculação eu encaixo aqui e ali. Se ficar doente, ferrou, durante novela não pode.

Ter conhecido muitos países na juventude foi importante para a formação de sua personalidade?

A vida é pequena, estranha, incompreensível. Mas a gente pode torná-la maior olhando para os lados e sacando as diferenças em cada indivíduo, cada povo. É bom interagir com essas estranhices, torna a gente maleável. Diferenças no pensar, na moral, no sentir das coisas. Não dá pra compreender tudo, não se tem elementos pra isso, mas dá pra aceitar, assim a gente aumenta por dentro. Hoje, resolvidos os perrengues de infância e adolescência, e tendo olhado o mundo com muito interesse, sou melhor no que me proponho a fazer. Ainda bem que tenho muitos anos para viver e ainda vai dar pra aprender um bocadinho.