A A A
A Esfinge

Revista Lola – Ago/2013

Aconteceu raras, raríssimas vezes: ler um livro duas vezes seguidas. Chegar à última página e voltar para a primeira, como se a segunda leitura fosse o natural seguimento da primeira. No cinema, que me lembre, só fiz isso duas vezes: um filme de Frank Capra, Deste Mundo Nada Se Leva. Quando as luzes se acenderam, eu continuei na minha. Não queria perder o clima daquela confusão toda. Repeti a dose mais tarde, com Cidadão Kane, de Orson Welles. Emendei as duas projeções como se fossem de um mesmo filme. Em literatura, já li alguns clássicos dezenas de vezes (Quincas Borba, de Machado de Assis, A Náusea, de Jean-Paul Sartre, A Educação Sentimental, de Flaubert). Daí o meu espanto (e até mesmo o encanto) quando terminei a leitura de Uma Vida Inventada – Memórias Trocadas e Outras Histórias (2008), de Maitê Proença. Creio que é o segundo livro dela. Em 2004 publicara Entre Ossos e a Escrita, para o qual escrevi um prefácio em que dizia:

"Temos a Maitê que deixa de ser o peixinho dourado e azul do aquário iluminado, no qual estamos a vê-la e admirá-la. Ela se oferece, agora, na densidade das águas submersas, onde nem sempre chega a luz do sol, mas tem o mar inteiro para se exprimir. Penetra com lucidez no sombrio átrio onde se realiza o solitário rito que fica, eleva e consola".

Ela acaba de lançar um livro, uma experiência inédita, me parece, na qual publica vários textos que recebera em seu blog, de autores que navegam pela internet, com seus desabafos, críticas e reflexões. Ela própria participa da aventura à qual deu o título curioso mas verdadeiro: É Duro Ser Cabra na Etiópia – tirado de um dos textos que recebeu num site criado especialmente para receber a colaboração de visitantes anônimos. O novo livro tem uma apresentação que escapa da tradição gráfica. Apela para cores diversas, tem desenhos e fotos e, principalmente, comentários a mão da própria Maitê. De certo ponto, é um produto visual.

Até aqui falei do livro, agora preciso falar da autora. Sendo, como é, uma das artistas de maior brilho, tanto no cinema, teatro e principalmente na televisão, é surpreendente a limpeza de seu texto e o enigma de sua vida interior, que nem mesmo uma biografia formal conseguiria decifrar. Ela inventa uma vida, embaralha memórias e vai transformando os grandes e pequenos momentos que viveu ou pensou ter vivido em matéria de reflexão que atinge não apenas qualquer indivíduo ("unus aptus essere pluribus") mas a todos aqueles que, mesmo contra a vontade, fazem parte do gênero humano.

O bom gosto que nela não é uma segunda natureza, mas é a primeira, ao mesmo tempo que comenta, critica ou absorve qualquer acontecimento do mundo e principalmente de sua vida pessoal, revela com crueza o espetáculo que ela assiste e do qual participa. Não precisamos concordar com a autora, uma vez que raríssimas vezes ela concorda com aquilo que Shakespeare chamou de "mil acidentes da carne".

Obrigo-me a algumas citações desta vida que Maitê inventou ou pensou ter inventado: seria banal procurar onde termina a memória, o delírio e a confissão.

"Não sei bem se aquilo que penso é o meu próprio pensamento e se o que desejo é o meu querer ou de outro."

"Minhas microquestões me empacam e eu preciso seguir, mas tenho de me livrar de mim para voltar a mim."

"Gosto do Rio, amo às vezes, mas não sou daqui, e não sou de canto algum."

"Quando faço tudo certo, ainda assim faço errado."

"Será que os doidos são mesmo doidos?"

"Quero o meu tempo de volta. Afinal, quem foi que inventou o futuro?"

"Esta noite, tive um pesadelo. A verdade se encontrava do outro lado de um vasto oceanoe eu não sabia nadar."

"Certa vez, eu vivi uma paixão estética. O homem era um deus. Era burro mas era belo. Falava pouco e quando falava não dizia nada."

"A avó Berta, com sua torrente de emoções, era um antídoto contra a monotonia. Berta gostava de sofrer em voz alta. Ela era incapaz de calar-se, mesmo estando só."

"O pato então andava atrás dela, por toda parte, seguindo-a daquela forma geométrica que os patos têm ao caminhar em bando. Patos não gostam de curvas."

"Nunca entendi por que são tão poucos os suicídios no mundo. Digam o que disserem os religiosos, não pode ser outra coisa se não o legítimo dispor do próprio corpo para interromper o intolerável".

"Compreendi, na última incursão, que os idiomas ocidentais não servem para muita coisa quando se está na China. Tentar se expressar com gestos também não presta, chinês gesticula em chinês."

"Prometo que na próxima encarnação virei preta e batista para voar alto sem ter que sair do chão."

"Descabelo-me em cinco idiomas, faço mímica, vou às lágrimas. Eles me olham como se observassem o cruzamento de um polvo com uma girafa."

"Assim, a noite das ilhas Salomão corre em tsunamis de suspiros com suor e na manhã seguinte, a vida começa quando já é tarde."

Tal como em seu primeiro livro, Maitê nada escreve sobre sua atuação na televisão, no cinema e no teatro. Nenhuma fofoca, nenhuma revelação de impacto. Tirante uma ou outra pequena marcação do cotidiano profissional, seu texto supreendentemente escapa da vala comum dos livros em que o autor proclama suas verdades, confessa seus ressentimentos, lamenta as incompreensões recebidas e exalta os triunfos obtidos. Em resumo: ela não faz a biografia dela mesma.

Os momentos dramáticos de sua infância, mãe assassinada pelo pai, são relatados com a mesma isenção e crueza com que José Lins do Rego descreve a tragédia do menino de engenho que era ele próprio, e que passou por drama igual, ponto de partida para o seu ciclo da cana-de-açúcar e, de quebra, para sua vida toda.

Bastaria esse pormenor da obra de Maitê para colocá-la no nicho mais nobre da literatura brasileira. Evidentemente que a sua forte e contínua presença em outros gêneros da nossa produção cultural inibiu até agora o reconhecimento crítico que ela merece.

Não tenho qualificação técnica para julgar a artista Maitê Proença, embora ela tenha trabalhado em dois projetos meus para a antiga Rede Manchete (Marquesa de Santos e Dona Beija). Minha longa permanência, boa ou má, na complicada seara literária e editorial obriga-me a considerar Maitê Proença como uma autora de primeiríssimo time. Lendo seus livros, e relendo-os imediatamente, em muitos instantes senti a presença de Clarice Lispector, justamente porque ela nada faz para copiar ou se inspirar na autora de A Hora da Estrela. Tampouco na obra de uma escritora esquecida pela crítica e pela mídia, mas venerada por muitos: Maura Lopes Cançado, que nos deu uma obra-prima: O Hospício É Deus.

O último lançamento de Maitê Proença, É Duro Ser Cabra na Etiópia, vai acrescentar alguns milhares de livros à sua obra que tem mais de 720 mil exemplares vendidos. A luz da ribalta costuma ser efêmera. Mas para a moça que pergunta, sem mágoa mas com distaciamento, como queria Brecht, "Quem inventou o futuro?", haverá lugar e luz no assombroso futuro que ela própria inventa.

TUDO QUE ELA É (E SEU ÚNICO DEFEITO)

POR...NEY LATORRACA

Qual será o papel que minha estrela representa melhor: Atriz? Amiga? Irmã? Filha? Autora? Produtora? Diretora? Sem dúvida nenhuma, todos.

Maitê é uma grife. Uma linha inteira dos mais poderosos perfumes e aromas, fortes e suaves. Você passa na pele e o cheiro fica. Entra pelos poros, pelo nariz e acaba na alma. Maitê não é mulher-fruta porque não é vulgar. Maitê não é reality show porque não é descartável. É uma amiga que está ao seu lado nas horas mais difíceis. Sou amigo de Maitê há mais de 30 anos. Contracenar com ela é uma delícia. Ela troca, brinca e deixa sempre um excelente clima nos palcos, nos sets de filmagens e nos estúdios de TV.

Sou seu primeiro leitor, ela manda sempre a primeira prova dos seus escritos para eu ler e dar minha opinião. Falamos muito ao telefone, os mais variados assuntos: parar de fumar, como representar uma cena, e claro que o assunto principal é sua filha amada Maria, que ela educou com um altíssimo padrão de caráter. É muito bom ver o amor das duas. E como prova do meu amor por Maitê, vejam só, eu carrego na minha carteira uma foto dela e outra da minha mãe. Deu para ter uma ideia da força de La Proença?

Quando nos encontramos, eu sempre canto para ela a nossa canção tema: "Ô coisinha tão bonitinha do pai". Mas tem um detalhe: Maitê é péssima para dar carona, já me deixou na chuva sem guarda-chuva, apenas com uma folha de jornal nas mãos para servir de abrigo.

Foto. Pablo Saborido
Beleza. Diego Américo/CapaMGT
Tratamento de imagem. Regis Panato/Photouch