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Veneno Sedutor

Interview - 1995
 

Ela não é só um rosto belo da televisão.
Maitê Proença é inteligente, bem- humorada, senhora de si. E além de tudo interpreta vilãs venenosamente bonitas e arrogantes, como na novela "Cara & Coroa".
Isto porque sua beleza luminosa, de tão intensa, é quase petulante.

CADÃO VOLPATO

Maitê, em tupi-guarani, quer dizer "coisa feia".
Era um artifício usado pelos chefes para afugentar os maus espíritos. No caso de Maitê Proença, espíritos à parte, o nome é uma dessas espantosas ironias que costumam acontecer na vida de algumas pessoas. Porque, óbvio, ela é linda. E se a primeira impressão é a que fica, eu fico com as fotos que acompanham esta reportagem. Ver Maitê no momento em que estas fotografias com sabor dos anos 60 eram clicadas foi uma experiência de deleite que inundou uma tarde inteira de um desses dias modorrentos da semana em que nada prometia acontecer.

Estávamos no alto do Morumbi, numa casa que ganhou um prêmio de Bienal ao ser construída — clara, alta e iluminada, sustentada por umas colunas improváveis, um primor de desing. E dentro e fora dela a beleza luminosa de Maitê.

Para mim ela encarnou naquela tarde uma espécie de sumo daquelas lindas mulheres dos filmes de Antonioni e Roger Vadim, só que sem as torturas matafísicas que empestiavam suas pobres almas tão bem-acabadas de corpo. Não. Maitê tem senso de humor. Tem imponência que eleva os seus exíguos 1,63 m (você acredita que uma mulher como aquela só mede isto?). Tem malícia: ela se permitiu uma porção de poses atrevidas, com as mãos "lá", as pernas bem à mostra, o olhar de quem bebeu um pouquinho além da conta numa festa de "A noite", do Antonioni. Ela até flutuou num barquinho de borracha na piscina (e eu posso garantir: com aquela ninfa de água clorada em cima, foi o bote mais chique que já flutuou sobre uma piscina). A beleza de Maitê, metida naquelas roupas sofisticadas, seria o centro de qualquer festa.

Ela parece que nasceu para uma sofisticação quase arrogante.

A outra Maitê, entrevistada em seu próprio habitat, um amplo apartamento ao lado do Copacabana Palace, mostrou-se tranqüilamente bem com a própria beleza. Ela estava almoçando quando eu cheguei. Tinha o cabelo úmido, vestia camiseta, uma bermuda de ciclista e tênis brancos. Lá fora, o dia cinzento, a avenida Atlântica e o mar. Uma visão privilegiada da pérgula do Copa, a piscina onde tantos famosos deram braçadas.

Maitê nada tem de arrogante. O que ela possui é aquela encantadora petulância que acompanha as mulheres muito bonitas, muito paparicadas.

Ora, ela é uma das atrizes mais lindas e famosas do Brasil. O que mais chama a atenção é a simplicidade com que ela trata a própria beleza. Um fator que, despretensiosamente, é capaz de deixá-la mais bonita.

E, como se não bastasse, ela ainda vive um momento muito sereno. A forma que usa para expressá-lo é divertida:
"Eu não tenho medo de fazer mais nada. Se eu tiver que me vestir de galinha cocorocó, eu posso. Tenho, hoje, segurança suficiente para não me sentir ridícula." Sim, eu fiz a pergunta. "Você se acha bonita?" Resposta: "Eu me acostumei comigo." Aposto que mulheres belas assim não se acostumariam nunca e jamais se atreveriam a encarnar a tal galinha. Mas o assunto beleza se esgota rapidamente — é um dos itens obrigatórios quando se fala de Maitê.

"Quando eu cheguei à Globo, eu vinha da Índia. Era um E.T. lá dentro. Eu não sabia quem eram aquelas pessoas. Glória Menezes, Tarcísio Meira, Francisco Cuoco, Regina Duarte. Meus pais eram intelectuais. Não era de 'bom tom' ver televisão em casa."v Antes de aportar na Globo como um extraterrestre, Maitê freqüentou o tablado experimental de Antunes Filho, com o grupo Macunaíma. A expressão teatral era fruto de sua curiosidade com relação aos gestos humanos: seu interesse na Europa era o corpo, o que a levou às aulas de mímica do mesmo professor de Marcel Marceau. O problema é que se levava dias para mover um dedo mindinho e Maitê sempre gostou de viajar. De volta do exterior, antes ainda da Globo, houve uma experiência no ramo das telenovelas, Dinheiro Vivo, na extinta TV Tupi. "José Anchieta e Mário Prata me convenceram de que nós íamos fazer TV underground e eu, veja só, acreditei." A Globo acenou seis vezes para a jovem atriz. Quando ela finalmente se dispôs a conversar e perguntaram o que ela queria fazer, Maitê respondeu: "Quero fazer o personagem principal da novela das oito."

"Como? O quê? Por que você acha que pode fazer o personagem principal da novela das oito?"

"Eu não acho nada. Vocês é que devem achar. Afinal estiveram me chamando todo esse tempo. Eu acho que não sei fazer, mas garanto uma coisa: sou bom investimento."

Tamanha petulância causou a perplexidade esperada na direção da emissora.

"Me acharam louca de pedra. Tanto que me deram o papel." A novela era Coração Alado, que Maitê acabou não fazendo por causa de um acidente automobilístico que deixaria seqüelas físicas até hoje, na na forma de umas pontadas na perna, lá onde colocaram um pino enorme. Ela ficou um ano sem poder andar. Pois algum maluco da emissora, que ela não quis nomear, ainda queria que ela gravasse, no hospital, com a perna inclinada em 45 graus numa tração de 16 kg! O primeiro trabalho na Globo só viria com a novela As Três Marias.

Desde então, aquela petulância inicial, que revelava muito mais um desconhecimento da importância do meio em que ela se movia, transformou-se numa espécie de estigma para papéis futuros. Maitê foi — e está sendo, em Cara & Coroa — muitas vezes vilã. Uma vilã de talento, venenosamente bonita e arrogante. Também foi uma forma de ela se defender dos papéis mais óbvios que cairiam tão bem num rosto tão lindo.

Por pouco ela não foi a nova Namoradinha do Brasil. Defesa, por sinal, deve ter sido uma palavra-chave na vida de Maitê, que tem um passado trágico na família, com as mortes violentas da mãe e do pai, o internato numa hospedaria luterana, as viagens solitárias pelo mundo.

Ela não fuma, parou de beber e não vê televisão. E pensar que esteve afastada quatro anos da televisão. Não parece, talvez por causa da marca profunda que sua beleza deixa na tela — e aí estamos nós falando de beleza novamente. Anotei alguns nomes que xeretei na estante e comentei com ela. Havia Rabelais, Bertrand Russell, Stendhal, Thomas Mann, Oscar Wilde, Truman Capote, Byron, Shakespeare. Já leu tudo isso?

"Antigamente", ela diz, sem dar muita importância ao fato.

"Meu pai me obrigava a declamar Shakespeare com sotaque britânico. Eu fazia o fantasma e ele era o Hamlet."

Nossa, imagina esta menina na Globo, encarando os diretores com olhares rútilos. "Ficava bem quieta no meu canto, achando aquela gente burra. Citavam coisas sem a menor noção do significado. Daí a sensação de E.T. "Eu não me sinto absolutamente integrada em lugar nenhum. Nem quero. Se alguém disser que se sente em casa na Globo, deve estar mentindo. Casa é outra coisa. É imprescindível no momento o meu trabalho estar com os nervos à flor da pele. Deste ponto de vista, eu me sinto chacoalhada e mexida — no bom sentido — dentro da TV hoje em dia." Um pouco mais adiante na conversa, falando do Daime, que eu julgava um assunto ultrapassado, ela diz que lá, sim, se sente muito integrada. "E são pessoas da floresta, analfabetas, mas sábias. O Daime botou uma espada de luz na minha mão." Foi o acontecimento mais importante da sua vida. "O nascimento da minha filha aconteceu em decorrência do Daime, que abriu minhas comportas, inclusive as de fêmea parideira, e desfez os meus nós. Através do Daime fiz minha iniciação na espiritualidade, que hoje se manisfesta em mim de forma sincrética, mais abrangente e holística. Minha fé é absoluta."

Ousei confundir Daime com droga, mas ela rebateu, enfática: "Daime não é droga! E isto já foi cientificamente provado." Quanto às drogas propriamente ditas, ela diz que já experimentou várias, embora hoje não tome droga nenhuma. "Não é minha onda. Já fiz, e acho natural fazer, ter esta curiosidade, saciá-la e assim livrar-se dela."

Ela fala sobre todas as coisas com esta mesma naturalidade, como se nenhum assunto a surpreendesse, plena de experiências na vida. Viagens, desastres, casamento. Ela está aí, inteira, física e mentalmente falando (fez uma única correção no nariz, que nem chegou a ser uma operação plástica, por causa de duas fraturas sofridas num outro acidente automobilístico). E solteira. "Eu não sei se estou namorando. Está acontecendo uma história... Deliciosa por sinal..."

Maitê. Se os E.Ts. tivessem um quinto de sua beleza e charme, os terráqueos já teriam se rendido há muito tempo. E pensar que ela se chama "coisa feia".