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Estou onde quero estar,
o que não é pouco

Revista Bárbara - Abril/2010
 



 
 
Maitê é proeza. Articulada, enérgica e de múltiplos talentos, é bem-sucedida na tv, no cinema, no teatro, na escrita. E ainda por cima, linda de morrer.








Por Taís Lambert
Fotos Marcelo Faustini

Copacabana não estava pelando sob 40 e poucos graus naquele dia, mas o que estava por vir era quente, muito quente. Uma semana antes de embarcar para o Haiti, Maitê Proença abriu a porta de seu apartamento para o ensaio de BARBARA, falou sobre a estreia de sua peça neste mês em São Paulo; sobre sua personagem, Stela, em Passione (de Silvio de Abreu), a nova novela das 20h, que substituirá Viver a Vida em 26 de abril e ainda sobre família, política, relacionamento e a mulher contemporânea.
Falar de Maitê não é tarefa das mais fáceis. Fica-se ziguezagueando sobre os fatos com aquela contínua e incômoda sensação de que não há espaço em seis páginas - ou em 30, ou em 580 - para contar a surpreendente e intrincada trama de sua vida. Trama sim, porque é tão alinhavada por idas e vindas, descobertas, perdas e reencontros, sobretudo consigo mesma, que nem a fictícia parceria de Silvio de Abreu e do escritor Nelson Rodrigues daria conta. Em 2008, a atriz escreveu seu segundo livro, Uma Vida Inventada - Memórias Trocadas e Outras Histórias (Editora Agir, R$ 29,90), no qual misturou ficção e histórias reais de sua vida. É a um trecho do livro que recorro:
"Passei anos trancada num lugar sem sentimentos que inventei para sobreviver. Eu tinha 12 quando minha mãe morreu e o mundo se desfez. Meu pai, que a matou no auge de um ódio pelo amor que sentia, foi cuidar de si. Meu irmão mais velho, que já havia se afastado de casa onde as coisas não andavam mesmo muito divertidas, só dava notícias de seis em seis meses. Ficou um irmão pequeno de sete anos - minha família - pra cuidar. Como o mar não estava pra peixe, resolvi submergir para águas profundas onde ninguém me veria rearrumar o caos que se instalara por dentro e por fora de tudo - e por ali fui levando enquanto a vida seguia como dava."
Aos 52 anos, completados no final de janeiro a atriz e escritora é mãe de Maria Proença Marinho, de 19 anos e namora o diretor de marketing Alexandre Colombo. Engajada, divertida e com mil afazeres neste ano de gravação - e nesta encarnação, sejamos mais justos - ela nos proporcionou o fino deleite de um bom bate-papo.

Sua peça com Luiz Carlos Góes, As Meninas, estreia em São Paulo em 12 de março. Qual é o foco de discussão e a intenção da peça?
É uma peça com mulheres e com um homem que não aparece. Usa a morte para falar da vida. É para toda a gente que quiser ser profundamente tocada. O público chora e, em seguida, ri de gargalhar. Essas duas emoções quase coladas é o que buscamos. E elas acontecem pela irreverência num ambiente que seria naturalmente solene, o de um velório. A ideia é que a peça rode o Brasil.

Você trata de um tema amargo - a morte - por meio da delicadeza, do questionamento e até mesmo do despudor e humor de meninas. É uma maneira de mostrar desprendimento sobre uma realidade tão espinhosa, que é o morrer?
Sim. Acho que para se tolerar a dor, só com muita graça. Só em novela as pessoas sofrem de forma ininterrupta, na vida não é assim. Basta ir a qualquer velório e você verá um bando de gente reprimindo o riso pelos cantos, contando piadas e casos, inclusive e, sobretudo, a respeito do morto.

Como é sua personagem na nova novela?

Ela é boa mãe, boa nora e esposa paciente. O marido, um bruto, agressivo, cruel e estúpido. É frustrado e triste e trata todo mundo aos pontapés, sobretudo a mulher. Para aguentar, ela tem casos avulsos, que não rendem porque ela não deixa. Até que um dia...

Em Guerra dos Sexos (1983), você contracenou com Fernanda Montenegro. Como tem sido o reencontro, agora como sua nora em Passione?
Fernanda é divertida, inteligentíssima, muito ligada ao trabalho, muito estudiosa. Tudo o que pensa é para dar densidade àquilo que todos nós estamos tentando construir juntos. Presto imensa atenção às nossas conversas e a tudo o que ela oferece como conceito para nossa criação. É transformador.

Passione é a sua 20ª novela, contabilizando mais de 30 anos de carreira na TV. Qual o balanço que você faz desta longa jornada?
Estou onde quero estar. Não diria isso há 15 anos, mas hoje é uma realidade. E não é pouca coisa, não é mesmo?

Qual é sua opinião a respeito do Brasil pós-Lula?
O governo Lula, como se sabe, foi muito favorecido pelas circunstâncias econômicas favoráveis do mundo. De 2004 para cá crescemos 4% no que diz respeito às finanças. Esse crescimento vai se acentuar com ou sem o Lula, porque a China está comprando nossa matéria-prima e nossos produtos, e por outras mudanças que nos favorecerão. Independentemente do governante, se não atrapalharem, o Brasil vai entrar numa espiral de crescimento como nunca aconteceu. Já era hora! Não é questão política, mas econômica.

Você é uma mulher com uma trajetória de vida fabulosa sob diversos aspectos. Como sua filha se relaciona com sua história?
Maria conhece essa mãe e não outra. Nossa relação é franca e bem trabalhada. Tudo o que fiz desde que minha filha nasceu foi colocando-a em primeiro lugar, primeiríssimo, disparado. E nunca foi um sacrifício, faço porque escolhi assim. Nosso amor é imenso e leve.

Ela estuda, já tem profissão definida?
Faz Direito na PUC-RJ. É e sempre foi muito boa aluna. Eu tinha de fazer malabarismos para ela levar a vida escolar menos a sério e não sofrer horrores quando algo era mais difícil de executar.

Vocês duas já viajaram bastante. Qual foi a viagem mais marcante? O que aprenderam juntas?
Fomos a Bali, e meu irmão também estava. Maria não comia nada apimentado, mas na Ásia seria impossível: eles colocam pimenta, cravo e gengibre na mamadeira das crianças, não compreendem a comida sem condimentos picantes. Chovia diariamente, nós só tínhamos uma lambreta e quem falava inglês era com um sotaque carregado complicado de entender. Muitas adaptações foram necessárias de nossa parte. Maria, pequena, estava achando tudo muito difícil, até que um dia acordou e pediu que a levasse ao mercado. Compramos quatro panos, tipo canga, a pedido dela, e a partir daquele momento ela passou a se vestir enrolada naquilo, assim como faziam as mulheres locais. Adaptou-se, em seguida, a tudo! Viajar é desautomatizar, é abrir o espírito e deixar entrar. Depois perceber para onde aquilo te levou...

O universo feminino, mais do que nunca, está borbulhante em muitos aspectos. A evolução segue a passos largos, não é mesmo?
Há muito pouco tempo, a mulher estava fora da civilização. A sociedade se organizava de forma masculina, industrial. Acho que entramos num mundo mais horizontal, que se faz por talentos e singularidades. Portanto, um mundo muito mais afeito às características da mulher, que pensa a longo prazo, leva em conta o contexto, coleta mais informações e consegue fazer várias coisas ao mesmo tempo, além de ser intuitiva e ter uma mente mais tolerante. No século passado surgiu a mulher magra, ágil, com o corpo pronto para produzir. Um corpo que não queria mais ser visto como parideiro, mas que agora teria novas utilidades práticas. Acho que o mercado fez mau uso dessa imagem, deturpou-a, e nós não queremos mais ter que parecer uma menina de dezoito anos, esquelética, para ser uma mulher bonita.

Fala-se muito em emancipação feminina, em "mulher, sexo frágil, que nada". Será que cobrar-se ser 'forte e inabalável' para demonstrar poder e segurança é o caminho para a autovalorização e para conquistar o respeito deles?
O problema atual é que a mulher continua escondendo a essência de sua feminilidade. E é aí que entra a confusão. Nesse mundo novo que vai se formando, onde eles perdem espaço e nós ganhamos em áreas e setores que sempre foram redutos masculinos, eles estão assustados e nós estamos sem saber como nos comportar. Não nos mostramos ainda como somos no fundo, não nos sentimos à vontade para afirmar nossa lógica intuitiva, sensível e aparentemente contraditória - mas onde cabem várias tonalidades de verdades. E muitas de nós estão perdidas em futilidades.

Como assim?
Elas buscam o feminino pela sua caricatura. Tomam hormônios de crescimento, saem falando grosso, colocam plaquinhas de hormônio para eliminarem a menstruação, as celulites, as flutuações emocionais, enfim, tudo aquilo que as constitui como mulheres. Aí o homem olha aquela mulher biônica e vê uma coisa parecida com mulher, mas que não é. Não tem cheiro de mulher. Ele leva para o quarto porque ela é a caricatura da gostosa, mas no dia seguinte, ele, sem entender porque, não está mais interessado. Essas mulheres biônicas escondem o melhor de si e colocam na frente o que todos nós temos de menos interessante, que são as nossas exterioridades, a aparência.

Os homens assistiram, nas últimas décadas, a um espetáculo feminino de conquista de espaço. Em sua opinião, eles estão perdidos diante disso?
Eles sempre estiveram perplexos com o que a gente representa. Todo homem que a gente vê andando por aí saiu de um ventre feminino. Nós somos seres que geram crianças do nada. Sem fazer esforço, sai das nossas barrigas uma criatura com dedos, rins, pulmão, sangue, coração, tudo funcionando. É um milagre corriqueiro, mas ainda assim um milagre. E esse poder nos confere uma dimensão divina. Nós somos misteriosas, mais introspectivas, somos complexas e contraditórias, e nascemos sabendo amar incondicionalmente. Tudo isso é muito esquisito para eles. Acho que o homem está muito assustado com a nova mulher perigosamente livre, perigosamente sexualizada e interessada em si mesma e não servindo mais àquele ponto de referência estável a que ele estava acostumado.

Eles estão tentando lidar com isso ou criando defesas?
Tenho a impressão de que isso tudo deixa os rapazes atordoados e que, não dando conta do tamanho das entidades que os atraem, preferem lidar conosco por partes. Por isso que nas baixas conversas de botequim eles nos retalham em palavras depreciativas. As expressões para designar uma mulher sexualmente livre, por exemplo, sempre foram e continuam sendo depreciativas: galinha, piranha, vaca etc. Enquanto eles, quando fazem exatamente as mesmas coisas, são garanhões, "espadas", entre outros adjetivos enaltecedores. Ou seja, não conseguindo se relacionar com a mulhersubstantivo, essa mulher misteriosa, eles nos reduzem a um adjetivozinho qualquer. Mas nós, que os amamos acima de tudo, sublimamos a falta de jeito e percorremos gerações lambendo a virilidade de nossos Apolos...

Muito já foi conquistado e transformado e muito ainda está por vir...
A parte boa é que vai se chegar lá, com um mundo de mulheres de verdade, inteiras, confortáveis com suas características internas e externas, e homens que nos querem bem, que nos admiram e respeitam. Vai acontecer uma realidade de pesos iguais entre esses sexos tão distintos. E teremos um mundo mais tranquilo, com mais entendimentos e menos guerras, por exemplo. O homem tem natureza guerreira, mas a mulher sabe que nas guerras se perde filhos e amores.

Falando nisso, você disse que irá ao Haiti. Por quê?
Ficarei uma semana por lá. Um amigo de infância tem uma ONG chamada Expedicionários da Saúde: são médicos voluntários de diversas especialidades que, desde o primeiro momento, se instalaram em Les Cayes, a 200 km de Porto Príncipe, para praticar cirurgias de toda natureza. Fazem em torno de vinte intervenções diárias, amputando, colocando próteses, salvando vidas. Irei para fazer um documentário filmado e auxiliar no que for possível. Assim como todos os médicos, dormiremos em barracas e levaremos nossa própria comida. Voltarei com fotos e relatos. Para quem quiser saber mais - e como ajudar -, há informações no meu site.