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Vesti Um Longo E Fui À Praia
Revista Época - 2005
 

Acordei, vesti um longo de paete verde, preguei uns cílios postiços, enfiei uma peruca loira e fui à praia. Encontrei meu colega de smoking, à frente de um piano de cauda instalado na areia do mar. Cantei, cantei, e voltei pra casa ao por do sol.

Estranha a profissão do ator. Eu finjo que sou a Maysa e você finge que acredita. Aí eu canto, choro, me angustio, e você ouve chora, se redime. Fazemos de cada lado nossas catarses, e com sorte nessa mão dupla, modificamos um pouco a própria vida.

Incomoda-me quando escuto dizer de um político, 'esse aí é um ator'. Coisa nenhuma. Aquele, quando encobre seus feitos diante do eleitorado, está mentindo, é puro e simples. Já nós atores jogamos com a ilusão para ampliar a realidade. E nossa matéria prima é a verdade. Chaplin generalizou, 'eu continuo a ser uma coisa só, um palhaço, o q me coloca em nível mais alto do que qq político.' Nem sempre, mas quase.

Há profissões mais honestas que outras. A medicina por exemplo. Com toda a falta de estrutura, e apesar dos infelizes que a praticam burocraticamente, contaminados pelo descaso, ela traz desde a raiz uma proposta igualitária e correta. Os médicos da minha infância eram verdadeiros sacerdotes que iam à casa da gente à hora que fossem chamados, e chegavam para salvar vidas.

O jornalismo tb tem sua nobreza. A meta da imprensa é destrinchar a verdade e jogar luz sobre acontecimentos de interesse público. Não é sempre o q se vê, mas deveria ser. Com a difusão da informação, a mídia, na pressa de noticiar, tem por vezes causado danos irreparáveis. É assunto delicado, mas quando jornais se precipitam mostrando ângulos equivocados dos fatos, podem, por exemplo, tonificar processos de guerra por dificultar o entendimento em curso entre oponentes. Assim tb, pra citar um exemplo mais próximo, quando a mídia resolve fazer pressão desenfreada contra o governo, corre-se o risco de acelerar desordenadamente o desmantelamento do Estado, deixando-o, como sugerem alguns, entregue a ratazanas de ainda maior porte do que as que estão em atividade. Será possível? De qualquer forma, estes são os ossos da democracia e sendo a imprensa sua bacia de sustentação, é sempre melhor que esteja livre do que engessada. Assim, o jornalismo, quando praticado dentro de seus fundamentos é tb uma profissão de proposta generosa e honrada.

E a publicidade? Bom, essa tvz seja o maior mal da sociedade de consumo. Um mal necessário. Segundo Marx, existir reside em produzir e consumir. E é bom que a publicidade informe às pessoas sobre o que há para ser adquirido. Acontece que ela faz mais que isso. Ela torce os fatos e doura a pílula pra enganar as pessoas e concensualizar o consumo. A propaganda se apropria da nossa intenção e através de artifícios, altera e homogeneíza hábitos culturais. Quando o objetivo é vender sabão os danos são menores, mas quando se comercializa ideologia (política, religiosa, e qq outra) ou planos de saúde, aí a história se complica e resvala para imoralidade.

Um dia, quando ainda pensava no futuro, considerei todas essas profissões. Quis ser psicanalista pra curar a cabeça das pessoas - e a minha de lambuja. Pensei em fazer publicidade pelo que há de criativo na propaganda. E interessei-me por jornalismo pela aventura de correr atrás da notícia. Mas o acaso me escolheu para as artes e dou graças a isso. Dizem que a arte é o homem batendo no chão com raiva por estar longe de Deus. É por aí. E não dá medir forças quando se busca o intangível. Amanhã vou à Amazônia filmar no meio da mata. Irei pra longe de casa, do conforto, da rotina, de minha filha e meus amigos. Vou emprestar a vida pro personagem da atriz. Lá no meio do nada, quando estiver bem cansada, surgirá um paparazzi tentando buscar notícias picantes pra alimentar seu jornaleco marrom. E daqui a um ano, com tudo feito e o filme pronto, o público pode não gostar, a crítica pode torcer seu nariz empinado, e assim irão para o ralo cinco anos dos sonhos e esforços de uma trupe de artistas.
Mas não importa.

Como diz o ator Robert Mitchum com humor típico da nossa gente: Tudo isso ainda é bem melhor do que trabalhar.