A A A
Unhas do inconsciente
Revista Época - 2004
 

Mergulhei na escuridão. Era de tarde e me encontrava nos estúdios da emissora onde trabalho quando percebi a realidade a se afastar de mim. Nada havia acontecido de especial naquele dia, nenhuma chateação além das habituais, minhas cenas haviam sido gravadas regularmente, e era hora de voltar pra casa. Só que, no momento de partir, eu não conseguia fazer os movimentos corriqueiros para livrar-me do figurino do personagem, colocar minhas roupas pessoais, pegar o carro e sair dali. Num esforço incomum, e contando com poucas fagulhas de racionalidade, consegui arranjar um motorista que me levasse, deixando meu próprio carro pra ser resgatado quando o mundo retornasse ao eixo. Por sorte, o rapaz era quase mudo ou muito sensível e percebeu que o momento não era pra conversas — perguntou apenas pelo endereço e tocou na direção. Assim, por uma hora dentro daquele carro, fui mergulhando cada vez mais fundo nos abismos turbulentos de um universo que me engolfava rápida e violentamente. Quando cheguei em casa, cem anos depois, tudo estava escuro, não havia alma, nem o cachorro estava ali pra me lamber a inquietação. Mal conseguia andar. Cambaleando, acendi uma luz no último quarto — único interruptor que encontrei —, fui ao telefone e, numa provação olímpica, consegui discar pra meu ex-marido. A cozinheira que fora nossa e agora trabalhava para ele atendeu e percebeu que algo sinistro acontecia — apesar de mim, porque eu não dizia coisa com nexo. A moça chorou do outro lado e desligou, mas tive a impressão de que ia me ajudar… Em outro soberano esforço, me veio o número de uma amiga: “Estou caindo da vida, vem me salvar.” Eu me enredava no mistério abissal e não havia ninguém pra me trazer de volta — a solidão era paralisante. Tinha vergonha de mim, sentia raiva, estava do outro lado de todas as fronteiras, mas um comando inconsciente me punha frágil e incapaz de rumar para territórios mais estáveis. Olhei uma pessoa no espelho, não reconheci, andei, respirei, rezei, deitei, gritei, andei, rezei, respirei, rezei… Quando finalmente chegaram meus amigos, todos de uma vez, eu já voltava a mim e ninguém parecia compreender que a loucura acabara de me visitar para acompanhar-me ao mundo de lá. Tentei explicar, mas, extenuada, não consegui. O marido de minha amiga, que era espírita, me deu um passe. Meu ex-marido, que era preocupado, me deu um pito, minha amiga, que é esplêndida, me deu um abraço, e no final rimos todos aliviados. O que se passou, compreendi depois, foi algo quase corriqueiro hoje em dia, chamam de ataque de pânico, e foi dos maiores medos de minha vida. Jurei naquela hora que jamais me permitiria outro momento semelhante, e até hoje, benzadeus, não descumpri o combinado. Já havia tido, com o uso de drogas, experiências de atravessar fronteiras para espiar o lado de lá, mas nunca a loucura me havia batido à porta assim, à luz do dia, sem que eu a provocasse. A loucura permanente ou episódica dói terrivelmente, e isola do convívio com o outro. Por outro lado, ela descortina um universo caleidoscópico e intangível para os ditos normais. O matemático John Nash, que inspirou o filme Uma mente brilhante, sofreu anos de alucinações fantasmagóricas e, com grande esforço intelectual, aprendeu a driblar sombras paranoicas. Em sua autobiografia, ele diz: “Parece que estou pensando racionalmente de novo, como fazem os cientistas.” Mas acrescenta logo adiante: “Isto não é uma coisa que me deixe totalmente alegre, como aconteceria no caso de ter estado doente fisicamente e recuperado a saúde. Porque a racionalidade de pensamento impõe um limite no conceito cósmico que a pessoa tem.” Se a gente nunca olhar pra fora dos muros da nossa cultura, de nossas convenções, se não procurarmos territórios desconhecidos para adentrar o ilimitado, também não conheceremos o paraíso na Terra. Hoje, quando me acontecem momentos de medo e que me vejo de novo presa nas unhas do inconsciente, reencontro-me depois, quase agradecida. Aprendi a não ter medo de sentir medo. Aprendi que a vida tem disso, e que, se a gente se deixa vagar um pouco pela escuridão, sem pressa e sem atrapalhar, logo se passa dali. E que depois das sombras existe o reino da imaginação, onde grassa a liberdade. E que ali mesmo, dentro da gente, é onde nasce um lampejo de sabedoria que pode mover todo o universo.