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Do livro que eu talvez jamais publique
mas publiquei
Revista Época - 2004
 

No dia seguinte à morte de minha mãe, dormi na casa de Phoenix. Aos doze anos, ela era minha melhor amiga, e eu gostava de ir à casa dela, gostava da família, da calma, da mãe que cozinhava e tinha tempo pra crianças, e para mim quando eu estava lá. Não me lembro de como foi a noite, só de nosso encontro no velório da manhã. Eu não queria ver minha mãe morta, mas fui obrigada por minha avó, e Phoenix estava lá porque sua mãe a levara para me fazer companhia. Então, à saída do cortejo que carregava a urna para ser enterrada no cemitério de São Paulo onde já haviam enfiado meu avô dois anos antes, me escondi dentro do jipe da mãe dela e ficamos as três olhando os carros partirem. Chovia.

No dia seguinte foram me buscar na casa da amiga e me levaram pra São Paulo. Quando voltei à escola na outra semana, Phoenix não estava mais na sala, e não estava na escola. Havia se mudado para os Estados Unidos com a família. Perdi a mãe e a melhor amiga numa tacada. Nunca mais a vi, até que um dia, trinta anos mais tarde, Phoenix apareceu em minha casa no Rio, com o marido e dois filhos. Não fiquei comovida de súbito, havia muito em jogo, eu observava as diferenças. Ela era muito grande, alta, a família inteira era alta, um pouco gorda. E não era mais tão bonita apesar de estar arrumada e muito maquiada. O marido era pastor da Igreja Batista na Flórida, contou-me, e ela ancorava um programa de TV em que recebia personalidades da comunidade cristã. Os filhos pareciam de revista, lindos e fortes, eram também amáveis e sorridentes. Muitas palavras foram trocadas, mais do que eu conseguia assimilar, porque além das palavras havia tudo o que não estava sendo dito. Pelas tantas, ela começou a falar sobre a morte de minha mãe — finalmente, porque era para isso que estava ali, agora eu percebia —, e sobre sua partida misteriosa e de como se havia punido todos esses anos por não ter se despedido. Eu não compreendi o motivo de sua família tê-la levado embora sem que eu tivesse ouvido falar em viagem alguma antes da Tragédia. Com a mesma intensidade que fora frouxo o início do reencontro, ela agora se atrapalhava buscando uma explicação que eu não pedia. O marido e os filhos tentavam ampará-la sem conseguir dizer nada esclarecedor, até que minha amiga começou a ficar muito vermelha e, parecendo sufocar, caiu no meio da sala. Aquela mulher enorme. Parece que teve um fechamento de glote, e pelo que entendi não era a primeira vez, acontecera antes ao falar no assunto. Assim, do mesmo jeito barulhento e confuso que chegaram, levaram- na embora. Outra vez. Alguns anos mais tarde esbarrei com Phoenix em Manaus. Encontrava-me na Amazônia havia meses por conta de uma coprodução luso-brasileira e espanhola e ela participava de um congresso religioso. Por coincidência estávamos hospedadas no mesmo Hotel Tropical. Desta vez fui eu que não quis sua companhia, filmava uma história de época com cenas noturnas ambientadas na floresta profunda, não tinha energia sobrando para decifrar enigmas. E houve outros desdobramentos. Mas, para encurtar, quando comecei minhas incursões pela escrita, as lembranças turvas desta amiga de infância foram as primeiras a me cercar e pedir algum tipo de destrinchamento, literário que fosse.

Este livro, quando publicado há dez anos, ainda intitulado Entre ossos e a escrita, terminava com a crônica “Do livro que eu talvez jamais publique”. O título se justificava porque eu não imaginava que fosse um dia tratar intimidades de minha família aos olhos do mundo, mantive meus porões trancados por 25 anos de vida pública até me ver obrigada, por circunstâncias alheias a minha vontade, a abrir suas portas. As circunstâncias se impuseram. Nesses dez anos, desde o primeiro Entre ossos, muita coisa aconteceu, inclusive a publicação de mais três livros, e a encenação de três peças de minha autoria. O primeiro romance, Uma vida inventada, inspirou-se de alguma forma na crônica que teve seu título negado pelo futuro. Assim como aconteceu com a peça As meninas. Esta, mais do que o romance, tem como protagonistas duas crianças de doze anos no velório da mãe de uma delas. Do caixão saem cinco gerações de mortas que se relacionam, brigam, discutem problemas antigos, e também conversam com as crianças, porque são crianças, ora, e para elas a morte ainda não é nada, podendo ser vivíssima e até alegre. No texto Phoenix virou Luzia, uma menina que sente inveja da dor de Rubi, por esta se encontrar no centro de algo singular. Luzia diz:

— Rubi, eu bem que queria que minha mãe morresse só um pouquinho,
pra eu ficar estranha assim como você. Você está parecendo
alguém, assim, que não existe. Você parece a Bela Adormecida.


E para a defunta:

— Posso dizer uma coisa, tia Consuelo? Eu pensei que morto ficasse abatido, mas você está quase bonita. Eu não digo que a senhora está bonita, porque não sei se é pecado achar gente morta bonita… Desculpa estar aqui incomodando, mas é que não conheço ninguém que está aqui! Eu tenho que falar com alguém, entende? É a minha primeira vez num enterro: eu estou apavorada! Posso perguntar uma coisa? Eu não sou a melhor amiga da sua filha Rubi? Sou ou não sou? Posso fazer uma última pergunta? Depois eu prometo que te deixo descansar em paz como dizem que a gente deve fazer com os mortos. A senhora já notou que voltou dos mortos? Quando notarem que a senhora virou morta-viva, as pessoas vão gritar, não sabe? Vai ter correria. Talvez matem você de novo.

Por aí segue, e quando a peça voltar a ser encenada você assistirá se quiser. Quanto à crônica germinal, era narrada por uma Phoenix imaginada, ou Luzia, não importa (por isso todo este preâmbulo).

E era assim:

Eu estava lá quando a menina chegou ao necrotério onde se velava o corpo de sua mãe. Vinha seguindo a avó, que abria caminho amparada por duas mulheres. Vinha só, atrás. Ninguém parecia ter coragem de aproximar-se dela, até que uma senhora com o porte altivo se colocou a sua frente interrompendo o percurso mecânico que a levava em direção ao caixão. A mulher pegou-lhe a mão, sentou-a a seu lado numa das cadeiras desconfortáveis recostadas à parede e ficaram ali se olhando. Ofélia era diretora do conservatório onde a menina tomava aulas de piano e declamação. Era também amicíssima de Consuelo, que dava aulas em eventos extracurriculares do conservatório. Mais velha, a diretora era das poucas pessoas que tinham ascendência sobre a mãe da menina, tornando-se assim uma espécie de mentora de Consuelo. De onde eu estava, percebi por trás do jeito arrogante que o rosto de Ofélia lhe traía uma tristeza funda. É provável que já viesse observando a menina havia tempos. Devia saber, por confidências trocadas com a própria Consuelo, das coisas que andavam acontecendo na casa da família, onde tudo ocorrera. Passaram-se talvez três longos minutos e, depois de olhar como quem observa a alma, a mulher perguntou:

— Você sabia que isto ia acontecer?
E a menina:
— Sabia.
Há um lugar na cabeça de toda gente onde o futuro vai sendo escrito de acordo com os acontecimentos do presente. Algumas pessoas têm acesso a esse lugar. Ofélia sabia que a menina tinha visitado, mais de uma vez, e escondida de si mesma, o futuro de sua cabeça, e que assim ela se havia preparado para o fardo que carregaria. Mais tranquila, a diretora soltou-lhe a mão e deixou que atendesse ao insistente sinal da avó para aproximar-se do caixão.

O corpo de Consuelo estava coberto por flores, deixando à mostra apenas o rosto lívido e bonito. Lembro-me de ter procurado naquele rosto algum sinal da brutalidade com que lhe fora arrancada a vida e de deparar apenas com uma morta comum, trivial como meus avós que morreram de doença de velho. Talvez fosse o fato de saber da forma como havia morrido que me impressionava e a todos que estavam lá. Se bem que o tom da pele, o aspecto de cera antiga…, algo nela parecia mais morto que em outros mortos.

Jaira pegou o braço da neta, que, imóvel, olhava no cadáver a ausência definitiva da mãe. Encostou a mão da menina na testa de Consuelo e, segurando-lhe o pulso, fez com que acariciasse diversas vezes o rosto da morta. Em seguida, tirou de algum lugar, do bolso talvez, uma inesperada tesourinha. Pegou novamente o braço da neta e ajustou-lhe o negócio na mão. Manejando-a como um fantoche, fez com que cortasse uma mecha dos cabelos da mãe. Nesse momento a menina levantou os olhos, acho que para não participar ativamente do ritual macabro, e nisso cruzou o olhar com o meu. Parou então o que estava fazendo, e sem dizer nada nem olhar para trás caminhou na direção de onde eu me encontrava acompanhada de minha mãe.

Como ela, eu também era uma menina de doze anos e só estava ali porque aquela era a melhor amiga da minha vida e eu havia sido irredutível na decisão de estar perto naquele momento. Meus pais aceitaram porque o espírito de missionários cristãos que eram os predispunha a querer fazer algo para confortar a criança que frequentava nossa casa. Deus cuidaria dos eventuais estragos em minha cabeça depois.

A menina colocou-se a meu lado e pegou na minha mão enquanto mamãe nos abraçava por trás. Não sei quanto tempo se passou até que o corpo da mãe dela começasse a ser removido para o cemitério onde seria enterrado ao lado do avô falecido um ano antes. Ela pediu que a levássemos de lá. Como não dava para contrariar a determinação de sua avó para que ficasse onde estava, minha mãe resolveu que sairíamos, ao menos, da sala funérea. Aguardaríamos o que fosse num lugar menos melancólico e mais tolerável para nós três. Escolhemos o carro. Chovia na rua, mas ali era protegido dos olhares indiscretos, que não paravam de ir em direção à menina. Quando finalmente saiu o cortejo, parecia já terem se esquecido dela, ou como não a encontrassem resolveram partir assim mesmo. De dentro do jipe de mamãe, sentadas no banco da frente, pudemos ver o caixão sendo colocado no carro fúnebre e partindo para sempre. Anos mais tarde, já adulta, ela contou-me que naquele momento uma alteração definitiva acontecia dentro de seu ser. E que não tinha força nem vontade de reagir para proteger-se do movimento desconhecido. A dor era tamanha que a imobilizava, impedindo que perdesse os sentidos — e a lucidez impunha-se como indispensável à metamorfose. Era como se no carro, com o corpo da mãe, houvesse uma engrenagem de sucção que lhe puxava as coisas por um buraco no meio do tórax, e enquanto ele ia se distanciando ela ia sendo esvaziada. E, quando o momento passou, havia outro tudo dentro dela, com pouco que reconhecesse, e cheio de buracos dentro. Os buracos ela foi completando através dos anos, alguns, nem todos — muitos continuam vazios até hoje. Ela vive ainda, sabe… Só que isso fica pra outra hora.

Então, naquele momento dentro do carro, as circunstâncias da orfandade de minha amiga me atingiam, e acho que a minha mãe também, fortes, e, confesso, de um jeito um pouco impróprio. No para-brisa do carro escorriam enormes pingos de chuva, e pelo rosto da menina passavam sentimentos de uma perda irreparável. Ela me parecia muito bela… e eu assistia cúmplice, fascinada. Mas no meu pesar havia um quê de ciúme do destino, que escolhera a ela e não a mim, para ser protagonista de algo tão exclusivo.