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Perto da terra mais perto de Deus
Revista Época - 2004
 

Se os frutos produzidos pela terra
Ainda não são
Tão doces e polpudos quanto as pêras
Da tua ilusão
Amarra teu arado a uma estrela
E os tempos darão
Safras e safras de sonhos
Quilos e quilos de amor
Noutros planetas risonhos
Outras espécies de dor

Se os campos cultivados nesse mundo
São duros demais
E os solos assolados pela guerra
Não produzem a paz
Amarra teu arado a uma estrela
E aí tu serás
O lavrador louco dos astros
O camponês solto dos céus
E quanto mais longe da Terra
Tanto mais perto de Deus

Gilberto Gil é assim, poeta genial, lavrador dos astros. E é com safras e safras de amor que hoje renova seus sonhos pro cultivo da coisa melhor. Poderia amarrar seu arado na estrela e seguir o próprio conselho, deitando o baiano na rede dos frutos que já produziu. Mas tendo nos ensinado a sonhar, prefere agora, entre dificuldades e êxitos, objetivar no batente de ministro, semeando os campos da nossa cultura.

Esotérico descolado, Gil já não precisa distanciar-se da terra para estar perto de Deus, assim como outros não precisaram: Gandhi, Madre Teresa e Mandela para citar alguns. O tesão da vida é estar entregue de alma e corpo ao que se é, e só somos, numa relação dadivosa com o outro.

Eu estava pensando nessas coisas de bem, e lembrei de do Dalai Lama por motivos óbvios. Algumas vezes nessa vida, meu caminho cruzou com o dele. A ocasião mais recente foi num evento em Curitiba onde fui mestre de cerimônia de um show em que Sua Santidade se apresentou.

Naquela noite ganhei de presente um xale branco igual ao que o Richard Gere usa no pescoço, e no dia seguinte, sentados lado a lado, tomamos café da manhã. Percebi que Dalai começa a refeição com uma xícara de água morna e, por via das dúvidas, de lá pra cá nunca deixei de fazer o mesmo. Mas o que me marcou naquele final de semana foi a conferência que aconteceu uma tarde no Palácio de Cristal. A coisa ia bem humorada com Dalai no palco entre dribles de mestre e filosofadas divinas.

Platéia lotada, alguém pergunta o que fazer com o princípio da não violência quando se está diante de uma criatura armada disposta a matar.

- Nesse caso, o ideal seria que a pessoa de maior elevação espiritual permanecesse viva...

Um segundo de perplexidade e... gargalhadas.

De repente, Sua Santidade começa a apontar para o lado e pra baixo, sem no entanto interromper o fluxo de respostas ou desviar os olhos de seus interlocutores. Ninguém entendia o que se passava, e como continuasse gesticulando, resolveram por fim, perguntar-lhe. Havia mais de cem microfones e gravadores amontoados no chão à frente do monge para captar-lhe as sabedorias. Acontece que a fita cassete de um desses aparelhos tinha parado de rodar e Dalai estava tentando avisar seu dono, que, embevecido, teimava em não se dar conta do detalhe prosaico. Ou seja, a reencarnação do Buda ali explicando o universo, e tudo pára pelo zelo do mestre com o desleixo de um irmão. O rapaz ficou verde, a platéia encantada corou, e Dalai, com o espírito ligado ao Divino e a atenção ligada no Amor, simplesmente continuou - do detalhe prosaico para o sentido da vida.

Pois é dessa dualidade maluco-generosa, que se faz os santos, os gênios, e já que foi ele que nos trouxe aqui, o Gil. Sim porque é essa a coisa, que Gil também tem sobrando, que em graus variados, constitui toda gente de bem.

Então, se às vezes te dá vontade de ser um cara legal, se bate aquela coceira de olhar além do umbigo e fazer pelo vizinho... aí companheiro é o seguinte:

1°) Amarra teu arado a uma estrela, porque ajuda a não cair o nível.
2°) Planta teus sonhos neste planeta por que é só onde vai dar fruto.
3° Firma teu ponto de amor no irmão aí do lado porque ele vai gostar e você também.
4°) E por fim, reza pra essa doutrinária fundamentalista que baixou no meu corpinho ir pregar em outra freguesia, ou nós estamos perdidos...