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Senhorita Smilla
Revista Época - 2005
 

A solidão, para mim, é como a benção da Igreja para outras pessoas. Para mim ela é a luz da misericórdia. Jamais fecho a minha porta atrás de mim sem a consciência de estar praticando um ato piedoso para comigo mesma.

É preciso respeitar a privacidade dos outros. Principalmente quando de resto suas vidas estão expostas a uma ferida aberta.

Nada desarma tanto quanto uma atitude de receptividade.

Para falar a verdade não gosto de pessoa alguma em grupo.

Existe uma crença muito difundida de que as crianças são abertas, de que a verdade sobre seu ser interior praticamente brota delas. Não é bem assim. Ninguém é mais protegido que uma criança e ninguém tem mais necessidade de sê-lo. Essa é uma reação a um mundo que o tempo todo tenta abri-la com um abridor de latas para ver o que ela tem por dentro, com a intenção de avaliar se não seria o caso de trocar por algo mais funcional.

É tão relativamente pouco o que as palavras podem fazer em relação ao sofrimento. Tão relativamente pouco o que as palavras podem fazer em relação a seja lá o que for. Mas que outra coisa temos?

A lamúria é um vírus, uma doença mortal, infecciosa, epidemia. Não quero ouvir lamúrias. Não quero compactuar com essas orgias de mesquinhez emocional.

Fico olhando o pôr-do-sol, que nesta época do ano leva três horas. Como se afinal o sol, na hora de ir embora, encontrasse qualidades no mundo que agora o fazem partir a contragosto.

Quem diz que o uso de narcóticos deixa as pessoas imprevisíveis está dizendo um lugar-comum equivocado. Ao contrário, a droga deixa as pessoas muito, muito previsíveis.

Apaixonar-se é uma coisa altamente supervalorizada. Apaixonar-se consiste em quarenta e cinco por cento de medo de não ser aceito e quarenta e cinco por cento de esperança maníaca de que justamente desta vez esse medo seja desautorizado - e finalmente de modestos dez por cento de frágil sentimento de que exista a possibilidade de amor.
Já não me apaixono. Assim como já não pego caxumba.

Uma ruptura não precisa ser um colapso, ela pode muito bem assumir a forma de uma tranqüila passagem para a resignação.

A potencia de um homem decresce quando ele sai para o ar livre.

Você blefa maravilhosamente. Prefiro mil vezes sentar no alto do cesto de gávea ouvindo você mentir que andar no meio de todas essas verdades medíocres.

Não há ser humano que não fique aliviado quando alguém o obriga a falar a verdade.

Gostaria de ter escrito essas frases. Mas não o fiz. Saíram da inteligência luminosa de Smilla Jaspersen. A moça tem um jeito de perceber as coisas pelo lado inusitado, do tipo que torna tudo óbvio mas só depois de apontado por ela. Às vezes também, é delicada a ponto da gente ter que virar a página com cuidado pra não perturbar o momento. Sim, a moça é um personagem e o livro Senhorita Smilla e o Sentido da Neve foi escrito por Peter Hoeg (com trema no o por gentileza revisores), e é um thriller passado na Groenlândia. Eu sei que a Groenlândia, pra nós tupis, é um lugar assim... muito... Groenlândia, mas vá por mim, leia que a história é bárbara, Smilla é um arraso, e passear sua imaginação pra longe de nossas atuais e repetitivas circunstâncias não fará mal algum.