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Será?
Revista Época - 2004
 

— De onde você escreve tem vista?
— Vejo o mar.
— Deve ser por isso que não quer publicar seus textos.
Foi assim que o editor da revista entendeu minha resistência inicial em publicar estas crônicas. Ao longo dos anos ele havia percebido que os que escrevem em local fechado gostam de mostrar suas coisas, e quem o faz olhando pro mundo tende a guardar na gaveta. Pois, como se vê, minha resistência encolheu, e não foi preciso tirar o mar da frente, mas o fato é que, quando a cabeça encrenca e a noia aposta que nunca mais terei uma ideia que preste, baixo a persiana e pronto… as palavras vão chegando.

Será a beleza tão dispersiva que nos põe bobos a contemplá-la? Será que ela rouba a vaidade de se exibir pro outro? Será que a janela do García Márquez dá pra lixeira pública? Não, não pode ser uma questão estética. É questão de vista simplesmente — feia ou bonita, da fábrica, ou das montanhas de Machu Picchu, tanto faz —, quando se escreve olhando o mundo a gente não tem como negar que tirou tudo dali, e talvez por pudor não queira repetir pra ele o que nos havia sido mostrado. Pode ser. Por outro lado, Joyce, Stendhal, Flaubert, Shakespeare, Jorge Amado… nenhum desses gênios era cego, como se poderia supor. Tem o Ray Charles, Stevie Wonder, mas são músicos, e Beethoven…

Vamos tentar pelas paralelas. O sujeito que mora no subúrbio se esbalda aos sábados no baile funk, enquanto o morador da Vieira Souto se tranca em casa pra proteger-se da violência urbana. E tem o outro que construiu um piscinão no jardim, três meses se passam, fim da novidade, ele paga os tubos por férias em Itacaré. Requinte de rico é a simplicidade — casa de pescador, praia deserta e luz de lampião. Você prefere ver o Mick Jagger no Maracanã ou no teatrinho da esquina? Se for na esquina e você estiver $podendo, saiba que seu ídolo deu pra fazer pockets de “Satisfaction” em microcasas de cem lugares. Com o mundo aos britânicos pés, Jagger prefere, agora, encantar um punhadinho. Caetano e outros deuses também.

No quesito sexo, sempre indispensável em considerações como estas, aquela transa escondidinha na cama apertada do quarto dos fundos é menos excitante do que a da suíte aclimatada, com travesseiros de pena de ganso? Temo que não. Acho até que tem gente ralando por uma king-size, pra depois ficar esparramada e tensa gastando neurônio em papo-cabeça, enquanto os da caminha xumbrega desencucam o desejo em baixas fantasias de alta voltagem.

Será?

Será que é mesmo assim? Será que enquanto minhas possibilidades aumentam o encanto retrai e as ideias encurtam? Será que o horizonte me leva pra dentro de mim? Será que me mudo pro outro lado do túnel? Será que ele volta se eu trocar minha king por uma mini de mola? Será que o Luis Fernando Verissimo tem tantos serás? Será que consigo uma última frase que responda a tantas perguntas?