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Queijo Suíço
Site Vida Boa - 04/08/2011
 

Minha memória é um queijo suíço, a consistência tem bom sabor mas os buracos são muitos. Marquei consulta com um neurologista depois de ouvir da filha que, não fosse minha facilidade para decorar textos, era certo que tinha Alzheimer. Palhaça! Por via das dúvidas fui ao doutor. Ele disse que a vida é que se encheu de frentes, as frentes me dispersam e tiram meu foco, não minha memória, “quando você se encantar e for absorvida por um assunto, não vai esquecer”. E o filme do Woody Allen a que assisti outro dia e que já não consigo contar pra ninguém? E o livro da cabeceira de que não me recordo nem do título? E a piada engraçadíssima cujo final saiu pra passear na memória de outro? Quantas histórias repetirei cem vezes nesse teste de paciência que hoje imponho aos amigos? Verdade que estes também recontam casos (sim, porque não vivo sozinha na ilha dos desmemoriados, há outros aqui, todos já tendo virado o Cabo da Boa Esperança, aquela lonjura onde Vasco da Gama assoprou cinquenta velinhas). Pois quando os amigos repetem histórias, mesmo aquelas de que fui protagonista, gargalho como se falassem do paquistanês da esquina. Naturalmente há ganhos… essa neblina que envolve o passado e confunde também lhe confere charme: a vida cruel ganhou contornos heroicos, momentos prosaicos envelheceram espertos, dores de amor viraram livros, desavenças perdoadas transformaram inimigos em irmãos. Ficou mais tolerável o passado, mais bonito.

Epa! Que onda nostálgica é essa? A verdade é que dá uma baita insegurança não contar com a caixa-preta. A engenhoca que sempre esteve disponível nos cinzas do meu cérebro abandonou-me no meio da viagem. Navego perdida num aviãozinho de papel, e ando fazendo papelões. Fui visitar uma amiga que se acidentou. Estava presente um casal, ele, um diretor da TV que me demitira tempos atrás, sendo desautorizado no dia seguinte, o que, obviamente, aumentou sua fúria contra minha pessoa. No afã de fazer graça pra amiga, não o reconheci. Desandei a contar histórias, alegre e satisfeita como se não houvesse passado, enquanto, da cama hospitalar, a amiga ensaiava sinais de alerta para me proteger de mim. Em vão. Compulsiva, eu seguia num entusiasmo de dar dó. Já em casa de noite, toca o telefone, “aquele era o fulano, seu arqui-inimigo”. Céus, e agora? Dias depois, quem liga é a mulher do sujeito, “olha aqui, querida, mandei fulano fazer as pazes com você, onde já se viu, uma mulher tão adorável…”. Por conta do queijo suíço, reconciliei-me com Fulano, com quem hoje compartilho esclerosada afeição.

A verdade é que o queijo suíço não vai desemburacar, e o jeito é levar na dignidade. Lancei mão do bloquinho para anotações. Não um, mas vários, espalhados por toda parte, já que os lapsos não escolhem hora ou local. Não serve o celular, porque que este nunca está onde precisamos, e, ao procurá-lo, blunfas!, vai-se a ideia fulgurante brilhar em outra constelação. Único inconveniente do bloco é que torna indispensável o uso de óculos. Óculos na cabeceira, ao lado da TV, na mesa do escritório, na bolsa, na outra bolsa que precisa também das lentes de sol, e no carro, lógico, pois assim está escrito na carteira de motorista. Esqueceu? Antigamente era simples, havia apenas aqueles feiosos de enxergar longe, mas desde que o queijo se alojou e, pela mesma época, acordei sem mais distinguir as letras do jornal (imagine pra fazer a sobrancelha), desde então, preciso de uma lente para cada bloco. E de outras para enxergar longe, a fim de cumprimentar as pessoas que me xingam de antipática porque não as vejo. Há ainda os óculos do computador! Eu bem que tentei um trifocal, me deu vertigens, confusão…, estava a desenvolver múltiplas personalidades, quando desisti. Uma tripla visão do mundo me levaria a mais um especialista, já que, além do neuro e do oftalmo, agora, com a realidade subitamente aumentada, precisaria de um psica para destrinchar as novas e múltiplas verdades. Céus, estou perdendo o foco, desviei-me. Pra onde? Vou dar uma espiada no suicinho encadernado, anotei tudo o que queria dizer.

Cadê os óculos?