A A A
Princesa do mar
Revista Época - 2004
 

Estou deitada na areia sem que ninguém me perturbe, e uma bichinha começa a se afogar escandalosamente no mar. O salva-vidas malhadão sai correndo valentemente em direção às ondas. Com o afogado de pescoço caído pra trás exangue em seus braços, nosso herói vem em direção a suas colegas que, juntas, observam consternadas. Ao sentir que chegou perto das amigas, a bicha abre os olhos, dá um salto a la Barishnikov, e cai graciosamente em pé, fazendo mesuras de agradecimento - ela acaba de vencer uma aposta pra atrair o bonitão. E a praia de Copacabana explode em aplausos, assovios e gargalhadas.

Moro no bairro há vinte anos. Na areia aqui da frente a freqüência muda com a hora. Cedo chegam as mães com seus bebês, as nove surgem os aposentados, e depois das onze é o povo da noite que arma a barraca, ou devo dizer, o barraco? É a maior concentração de veado e travesti por metro quadrado, de que se tem notícia. Estendo minha esteira na tranqüilidade, aqui ninguém olha pra mim - as estrelas são, claramente, outras.

Copacabana é como ter o centro da cidade dentro da zona sul. Tem brechó, moldureiro, sapateiro, sebo, mercearia, tudo com jeito de antigamente. Outro dia andando pelas ruas senti um cheiro forte lá do passado, virei, e era um açougue. Carne hoje é vendida em supermercado e tem cheiro de bicho gelado, muito diferente de bicho morto há pouco, pendurado pra gente ver, como ainda existe nessas redondezas. Da minha sala vejo um horizonte comprido, e se forçar os míopes e fixar em linha reta, encontro a Namíbia onde os negros falam alemão. Mais adiante um pouco vejo Botswana, e acima enxergo a África toda, de onde veio o povo que misturou no daqui dando essa gente toda que caminha no calçadão.

De noite o mar forma uma rua de luz, por onde a lua caminha até a minha janela. Nem todo mundo gosta do mar escuro, e o taxista que vinha pela orla encoberta falou, "isso de dia é lindo, mas a essa hora é uma imensidão de Deus me livre!"

Quando é assim, de meu apartamento olho pro lado e vejo, iluminado, o hotel mais belo do mundo. Entre nós, a piscina mais azul. Lady Di nadava nela de manhãzinha. Aqui de cima, ela lá, se esticando pra puxar a água, parecia mais alta do que quando vi pessoalmente. Na época, minha filha era bebê e tinha uma enfermeira tiete que um dia chegou em casa esbaforida porque a princesa havia se encantado com Maria a ponto de pedir pra pegá-la no colo - os flashes espocaram em mil fotos e eu que acreditasse porque veria tudo no dia seguinte no jornal. De fato, Maria tinha ido parar no colo da princesa, e sim, os jornais mostraram. Mas a realidade é que em outra versão, mais provável, a babá enfermeira teria arremessado minha filha no colo de Diana por não conseguir se conter diante de tanta realeza. Nada de mais é claro, apenas uma cena de porta de hotel em Copacabana...

Houve tempo em que tínhamos um binóculo em casa, não sei onde foi parar e sinto saudades daquela indiscrição. Por suas lentes vi cenas memoráveis... No carnaval e outras festas, a coisa aqui ao lado fica sempre muito criativa. Pra quem precisa inovar no papai e mamãe, o curso é completo com especialização embutida, e pra quem não precisa, é aperitivo certeiro. No primeiro Rock in Rio, as portas das varandas dos quartos ficavam abertas pra receber a brisa do mar, ou quem sabe, boba que sou, era intencional mesmo, para os hóspedes roqueiros entreterem a plebe, com seus talentos nem tão musicais. Funcionou. Do meu prédio, só os mortos ligaram a TV aquela semana...

Mas de meus impulsos voyeurísticos, um superou os demais no quesito suspense. Pela janela, bato o olho na pérgula e vejo o Sting com o Raoni. Papo vai papo vem, o garçon mete um copo de coca-cola na frente do índio-guerreiro. Ele olha, mexe o copo com a mão, com o dedo, brinca com o gelo, e nada de levar o suco pra beiçola, digo bodoque, digo que-baita-bodocasso! Pois eu já tinha me sentado, levantado e estava quase descendo com sugestões tipo, escorregue o líquido rápido que se escorrer ninguém percebe, ou fique de cabeça pra baixo e use o lábio superior, ou até mesmo me oferecendo pra beber o refrigerante, quando o maitre se tocou e, ufa, salvou a pátria amada - de um prato com guardanapo, surgiu um super canudinho! Claro, como é que não me ocorrera, era de canudo...

Copacabana é assim, cheia de surpresas. Aqui a virada do ano violento, é a mais pacífica do mundo. Aqui, a princesa se lixa pro protocolo, as raízes de nossa pátria trocam figurinha com o roqueiro internacional, e aqui, o rapaz que trabalha na noite ao relento, ainda tem humor sobrando pra se transformar, de dia, na maior estrela da praia.