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Perdição de linha
Revista Época - 2004
 

Aos treze anos me encantei por um rapaz de dezessete. Lá pelas tantas, dividida entre o bombardeio hormonal que se detonava em meu corpo e as regras do bom comportamento, resolvi perguntar a meu pai se já podia dar beijo de língua. Dia seguinte papai me embarcava num avião rumo à França — havia providenciado pra que sua filhinha permanecesse quatro longos meses distante do beijador potencial que lhe ameaçava a integridade. Mal sabia meu pai que era justamente nas lonjuras daquele país que sua criança descobriria, irreversivelmente, a diferença entre uma jujuba e um bom french kiss.

Agora é minha vez.

Minha filha de treze anos está no auge da puberdade. Maria não me pergunta o que pode fazer com as vontades que tem, mas, ao contrário de mim, percebo que enxerga bem os limites entre o desejo e a velocidade com que deve desabrochar nesse princípio de tudo. Acontece que o pode-não-pode mudou um bocado dos meus treze pros dela, e beijo na boca hoje é normal até em mais de um na mesma festa — tanto e tão abertamente que existe até nome pra isso. Fica-se com um, com dois, com dez. Confesso que já achei estranho: será que a geração de minha filha eliminou o sentido de posse, os ciúmes, a paixão ao primeiro beijo, e tudo ficou de repente livre, solto, e frio? Quando foi que as fronteiras cederam assim?

Nunca. Numa pesquisa caseira, percebi que os códigos são menos frouxos do que parecem e que as regras continuam rígidas e até mais parecidas com as de outrora do que seria desejável. O mundo girou e girou e foi parar nos mesmos dois pesos e medidas em que meninos podem tudo e as-meninas-que-se-comportem.

Simplificando, é mais ou menos assim:

Se você for menino e ficar com sete garotas na mesma noite, seus amigos dirão que tu pegou geral, que tu é farpa e espada, entre outros adjetivos enaltecedores. Já a menina, se ficar quietinha com um, tudo bem, se ficar com dois começam os comentários, mas se beijar três acabou: é perdição de linha, piranhice e galinhagem. Tem mais. O menino que passa meses sem pegar (existe termo mais abominável?) ninguém é liso. Ele pode inclusive ser farpa, mas estar liso naquele momento. Um farpa, mesmo que circunstancialmente liso, será sempre farpa, porque conquistou seu posto com múltiplas demonstrações de exibicionismo testosterônico. Já a menina, que não deve nunca ficar com muitos, também não pode ficar sem ninguém — quando acontece, ela passa rapidamente de desejável a encalhada. O menino que dá em cima de todo mundo é um singelo arroz, mas a menina que faz o mesmo continua sendo a velha galinha de sempre. A lista de nomes tem algumas novidades, mas, de maneira geral, os garotos permanecem bravos garanhões, enquanto as garotas se revezam entre o peixinho agressivo e a burríssima ave.

Estive cá com meus botões. Ora, todo homem que se vê por aí saiu de uma barriga feminina, e esse milagre cotidiano de saber fazer filhos, de certa forma, dá à mulher uma dimensão divina. Além disso, os atributos que a natureza associou ao dom ainda ampliam sua complexidade — meninas já vêm do ventre com intuição apurada, com facilidade introspectiva e com forte tendência ao amor incondicional. Tenho a impressão de que isso tudo deixa os rapazes atordoados e que, não dando conta do tamanho das entidades que os atraem, preferem lidar conosco por partes. Por isso eles nos retalham em palavras depreciativas — não conseguem relacionar-se com a mulher-substantivo, então nos reduzem a um adjetivozinho qualquer.

Mas nós, que os amamos acima de tudo, sublimamos a falta de jeito e, conformadas, percorreremos gerações lambendo infinitamente a frágil virilidade de nossos apolos.