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O pai, a mãe, e o que mora no meu coração
Revista Época - 2003
 

Desde que comecei a escrever pra revistas e jornais, as pessoas me perguntam se é tudo verdade, se tive outro filho além da Maria, se tomei hormônio de crescimento, se passei mesmo a calçar 42, se minha história de amor é assim ou assado, por aí vai. Give me a break, gente. Se até em autobiografias a criatura escreve o que ficou na memória, e esta, como se sabe, guarda as coisas como lhe convém, o que dizer de mim, que nem memória tenho mais… A verdade depende de quem conta, e, ainda que escancare as minhas aqui, muitas vezes simplesmente invento. Porque a versão da coisa é mais divertida, e entre uma mentira bem contada e uma verdade, escolho a primeira! Outro dia uma leitora reclamou de leviandade na escolha do tema: paus. Talvez eu devesse, para não incomodá-la, ter chamado de “pênis”, “membro” ou “o falo”. O senhor poderia introduzir o seu falo de forma a não provocar ardência em meus lábios vaginais? E o humor iria para onde, minha senhora? Pra Sibéria. E, enquanto a gente ficasse aqui discutindo moralismos, eles estariam lá às gargalhadas. Não. Quanto mais sério o assunto, que venha embalado na graça divina! E quase sempre é melhor. Quase. Mas agora não. Peço perdão e licença pra pesar no tema.

De uns tempos pra cá, desde que certa senhora resolveu fazer dinheiro com a tragédia alheia e escreveu um livro sobre os crimes do século, voltaram a me pedir entrevistas sobre a morte de minha mãe. É verdade que meu pai matou minha mãe. É verdade que anos depois ele suicidou. Também é fato que um irmão tornou-se alcoólatra e morreu disso no meu colo, e que o outro só depois de muita luta se livrou da dependência química. E mais e mais. Não gosto de falar disso, não me diverte, evidentemente. Mas há outros motivos. Essa história não é só minha. Ela aconteceu dentro de uma família de classe média alta, num mundo sem violências, onde nada disso era comum. É o enredo de minha gente (e alguns ainda estão por aí e precisam de privacidade). Começou pra mim na infância, infestou minha adolescência, e repercutirá dia a dia ao longo de minha vida adulta.

Minha mãe era feliz. Com ela eu aprendi a ter amor à vida. Ao lado dela o tempo era uma alegria. Ela era solta, leve, vibrava e fazia vibrar tudo a sua volta. Foi a pessoa que mais amei neste mundo. A segunda pessoa que mais amei foi quem me sobrou após sua morte — meu pai. Quis compreendê-lo. Quis e consegui. Amei-o imensamente até ele morrer também, anos atrás.

O que eu tinha a dizer publicamente sobre esses crimes que destruíram minha família — e que meu pai e minha mãe cometeram juntos — foi dito. Eu disse em depoimentos a juízes. E disse em plenário diante de um júri e uma cidade inteira, por duas vezes, ao longo dos intermináveis anos que levou o processo de meu pai.

Mas o que não foi contado, o que não está nos autos da jurisprudência, o que não foi dissecado pela justiça e mastigado na boca do povo, essa parte da história é minha, e de meu irmão. Mora dentro dos nossos corações, que sobreviveram a ela. E ali ficará — se nos derem licença.