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Óvulos velhos
Revista Época - 2004
 

Andei pensando muito em ter outra criança. Agora depois dos 40. Amo tanto minha filha. Quando ela me aconteceu, aquele milagre saído de mim cheio de dedos, órgãos, choro, fome, eu entendi absoluta e imediatamente qual a minha função neste mundo. Parir. A única ação que realmente dava sentido intenso à minha existência. Eu estava plena naquele instante pós-parto. Esvaziada e plena como um Buda. Como uma vaca. Eu e a vaca tínhamos a mesma fundamental importância que nos irmanava diante da criação e dava sentido à bovina vida dela e à minha, às vezes também um tanto quanto. Senti-me integrada e feliz: eu, a vaca, o Buda, minha filha. Era o Nirvana. Por que não repetir isso agora ainda mais madura, com ainda mais tempo pra curtir. “Talvez dê pra esperar um pouco”, diz o namorado. E a amiga: “Querida, vá tentando. Até ele se decidir, quem sabe você consegue.” A verdade é que na minha idade não há tempo para se esperar nada.

Fui ao médico. Deparei com o filho do meu ginecologista. O titular havia se aposentado. Não gostei. Seria um sinal para desistir? Você também está velha, aposente-se e espere os netos. Xô, Satanás! Pus um pano preto sobre os maus pensamentos e segui de cabeça erguida e proa embicada para meus saudáveis propósitos procriadores.

A batelada de exames deu resultados alvissareiros. Até o médico-pai ressurgiu num telefonema para dizer que do ponto de vista hormonal eu era uma menina de 23. Felicíssima, já vislumbrando uma imensa família à siciliana, saí dando feito louca. Pro namorado, oras. Meses de tentativa e nada. Voltei ao fi lho-ginecologista. É impressionante como esses médicos têm um jeito de falar de tudo, quando a gente está ali naquela posição de sapo.

— Tem trabalhado muito? Gostei demais daquela última peça sua, como é mesmo o nome? Parece que encontraram o Bin Laden.
— Mas e o meu assunto, doutor, o que acontece?
— Está tudo certo, você inclusive está muito bem, linda — por fora —, porque por dentro a coisa não é bem assim. Seus óvulos estão velhos.
— Ovos?
— Óvulos, meu bem, óvulos. Quatro garotões empurrando um carro é bem diferente de quatro senhores de sessenta, concorda? É o mesmo carro, o mesmo número de homens. Mas no segundo caso o carro pouco se mexe. Pois bem, os seus óvulos são os rapazes de sessenta. Estão velhos — repetiu.

O moral foi pro pé, mas como não sou mulher de me abater, segui adiante e partimos para as providências. Estávamos na quarta série de ultrassonografias intravaginais, eu ali novamente, com a perna aberta novamente, e ele novamente com aquele imenso instrumento enfiado na minha intimidade, vasculhando tudo por dentro. Escuto: “Você é muito expressiva.” Meu Deus, pensei, eles devem dizer essas coisas imaginando que vão descontrair a gente, ou será que ele fica com um tesão louco e fala qualquer bobagem pra disfarçar? Pensei. Mas disse:
— Puxa, que bom você achar isso. Levando em conta minha profissão, é bem bacana ter essa característica. Obrigada.
— Pois é, te torna muito interessante. Talvez interessante demais. Isso está lhe trazendo rugas, pequenas pregas, sabe? Me vesti e fui pra mesa de consulta:
— Doutor, o que posso fazer por esses sinais?
— Que sinais? — Cristo, ele realmente não está a fim de me facilitar as coisas!
— As rugas, as tais pregas doutor.
— Ah, isso é muito simples. Procure um bom dermatologista, você tem indicação pra Botox. Com poucas aplicações seu rosto ficará bem mais harmonioso.
— Ah, meu rosto, claro, sim, muito obrigada, muitíssimo obrigada mesmo, doutor.

Cheguei em casa e fui direto para o espelho. Os defeitos eram múltiplos. Os anos haviam provocado um estrago na minha pessoa. Como é que eu não tinha realizado isso antes? A TPM piorava as coisas. E faltava um mês pro meu aniversário de quarenta e…, deixa pra lá. Eu em pleno inferno astral tendo que deparar com uma realidade tão crua e visível — porque a vista cansada fica tão descansada nessas horas? Minhas sobrancelhas precisam de pigmentação, os sulcos ao redor da boca de restilene, a boca está fina e marcada (sou o Silio Boccanera!), a pele tem indicação para ácidos retinoicos, sentimentos paranoicos pedem análise imediata, os peitos precisam de silicone, a bunda de enchimentos, uma lipo se faz urgente, e… ahrrr! Com o mundo desabando sobre minha cabeça, toca o telefone, é meu ex-marido. “Eu te contei que a Ana (é a filha dele com a atual mulher) está largando a fralda?” Não. “Nós ensinamos, ‘quando tiver vontade, sente no peniquinho e faça’. Você acredita que ela fez certinho, só que sentou de calcinha e tudo e se sujou toda de cocô. Ninguém se tocou de explicar que precisava, agora sem fraldas, tirar a calcinha também. Não é lindo? Tchau querida, um beijo.”

Meu ex já fez três filhos desde que a gente se separou e eu não consigo fazer nem um. Eu que sei que são eles o sentido da vida. Não é justo.

E lá se foi mais um ano. Estou um ano mais velha, meus óvulos, coitados, velhíssimos. Aí penso assim: Também ter fi lho a essa altura pra quê? Quando ele tiver idade para reconhecer a esplêndida mãe que eu fui, tudo o que fiz por ele e para ele, eu já estarei morta. Não é boa ideia. Aliás, se der uma zebra e acontecer, será imperativo iniciá-lo o quanto antes no espiritismo. Assim ao menos poderemos nos comunicar entre os planos. Eu lá. Ele cá.

Ah, quer saber, vou tomar uma cerveja e chutar essa onda pra longe.

Pronto, já está tudo melhorando.

Pensando bem… olha eu ali naquele espelho — eu estou é linda, lindona, bem disposta, com saúde. Vou dar um bico nesse baixo-astral, pregar minhas lantejoulas, vestir minha saia rodada, enroscar no meu amor e sair para dançar. Depois a gente volta pra casa, e bota essas paredes pra tremer.

Mês seguinte: toca o telefone, é o médico.

— Tá sentada? Então pula. Deu positivo!