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Entre Ossos e a Escrita
Revista Época - 2004
 

Nos próximos dias estará nas livrarias um livro com as crônicas que publico aqui, e com outras ainda inéditas. Vai se chamar Entre Ossos e A Escrita.

Não sei pq dei pra escrever. Não sei se alguém sabe pq resolve se exibir assim. No meu caso a coisa é duplamente grave já que sendo atriz meus atributos se encontram escancarados para muito além do desejável. Suponho q a essas alturas qq carência de atenção q possa ter motivado minhas escolhas já tenha sido amplamente alimentada.
Ou não...

Uma atriz está sempre interpretando o texto de alguém. Ela deve moldar seu corpo ao de uma criatura criada no século passado por um estranho que não a teve como modelo. É assim tb com os hábitos, trejeitos, sotaque, conceitos, com tudo que forma aquele outro ser. Ela deve pensar o que não pensa e acreditar tão apaixonadamente naquilo, que caia em prantos qdo outro personagem se opuser a sua visão das coisas. Fora de cena ela dá entrevistas pra falar da carreira mas esconde o que lhe vai no espírito - tristezas pessoais, fracassos amorosos, inseguranças com o futuro, incertezas de toda ordem, não servem pra vender ingresso para peças de teatro. Momentos de auto-confiança tampouco. Ondas de arrogância, os fugazes instantes em que se acredita nas palmas, nos elogios, aquela hora em q a insegurança cede e a atriz respira satisfeita com seus feitos se enchendo de si, nada disso é bom pra promover o personagem da novela. O ator de sucesso está sempre a um passo da antipatia do público, e assim, busca fazer-se humilde, desprendido, generoso, amável e por aí vai. Há de se ter atenção pra que não percebam o truque; a sutileza é fundamental. Cria-se um personagem pro filme, mas outro tb pra rua, pra festa, pra padaria, pra conversa no botequim. Vai dando uma canseira danada esse negócio de não poder ser. Além disso, todos acham muitas coisas a seu respeito: só se alimenta de quiabos, é uma máquina de fazer sexo, toma pílulas pra crescer o queixo, usa drogas ao amanhecer, é exemplo de equilíbrio, um poço de candura... Seja qual for o estereótipo, a ai ai se o pegam fazendo coisas que o contradiga - é seu nome jogado na lama e cem chibatadas na revista de fofoca. Ao ator não são permitidas as contradições.

Então a gente fica assim, entre o prazer do trabalho criativo e os ossos pra mastigar contra a vontade. Não é novidade, toda gente sofre com a incompreensão do mundo, mas o cardápio da pessoa pública é um bocado mais indigesto.

Acontece que fui uma criança teimosa, uma adolescente sem freios, e por tempo demais, uma adulta defendida e agressiva. Hoje, tendo trocado de pele mil vezes, o imprestável em seu devido lugar, uma pitada de clareza aqui, outra lá... gosto da pessoa que virei. Tenho conforto em estar dentro de mim e não arrasto mais correntes por caminhos de pouca luz. Sei lá porque aconteceu dessa maneira e porque um belo dia acordei de bem com minhas circunstâncias. Parece que enquanto dormi, a vida resolveu se apresentar em síntese, pra que assim, com tudo resumido na minha frente eu tivesse um entendimento das coisas, e que ao acordar, não houvesse o peso das vivências, mas apenas os ensinamentos que elas me trouxeram. Não faço mais esforço pra fluir, sinto vontade de me expressar, tenho muito que dizer, e quero falar com todas as pessoas.
Deve ser por isso que escrevo.