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O jogo ou a fome
Revista Época - 2004
 

Nunca ficou muito clara para mim a razão real pela qual o jogo foi proibido no Brasil. Dizem que a esposa do presidente Dutra, muito carola — e por influência de um cardeal, Dom Jaime Câmara —, enchia a paciência do marido para atender a Igreja, que já na época não gostava dessas coisas. (Por que a igreja implica com essas coisas, jogar é pecado? Está na bíblia? Quando minha filha joga Banco Imobiliário, que utiliza prêmios em dinheiro-fantasia, está pecando? E eu estou permitindo que ela seja induzida a um vício futuro? E desviando do tema, mas seguindo a lógica, quando almoço, estou sendo induzida à gula?)

Dizer que o jogo favorece a lavagem de dinheiro não convence. Há tantas atividades lícitas que se prestam à mesma finalidade e nem por isso o governo cuidou de baixar qualquer medida provisória impedindo negociatas nos passes de atletas, na compra e venda de pedras preciosas, no turismo, na hotelaria, e assim por diante. Considerar ainda que o jogo estimula a prostituição infantil e por isso deve ser coibido leva ao raciocínio sofístico de que se deveria desestimular o turismo nas variadas regiões do país onde estrangeiros tarados desembarcam em cascata atrás de meninas disponíveis para o sexo remunerado.

Se crimes são praticados em decorrência de outras atividades, acontecem em grande parte porque as leis são permissivas ou não são cumpridas. Só a fi scalização eficiente por parte do governo pode ajudar a acabar com esta bandalheira.

Além do mais, o governo só proíbe o jogo dos outros, suas próprias loterias e sorteios mantêm-se, semanalmente, em frenética atividade. Impedir o funcionamento de cassinos enquanto se permitem as corridas de cavalo também não dá pra entender. Sem falar na reabertura dos bingos (viva a sensatez!) — um dos poucos locais onde senhoras inofensivas ainda se sentem protegidas das violências urbanas. (Em 2010, foram proibidos de novo.)

Tempos atrás assisti na TV à entrevista de um especialista em hidrologia, diretor de um desses órgãos federais de controle das secas no Nordeste. Dizia que o polígono das secas era bem menor do que se divulga e o fazia confrontando os mapas das secas com mapas temáticos da produção agrícola na região, sugerindo que, se houvesse seca nas proporções alardeadas, não haveria agricultura produtiva e vice-versa. Ele tentava provar que a abrangência do polígono era forjada para se obter subsídios que favorecessem os interesses de políticos clientelistas da região. Não sei quanta verdade há nisso, ainda que seja incontestável que aquele pedaço do Brasil careça de um plano honesto para incluí-lo de vez no mapa do país.

Como já disse em outra ocasião, se nos anos de Juscelino a indústria automobilística tivesse sido implantada no Nordeste, e não na já próspera região de São Paulo, teríamos evitado o êxodo para o sul e teríamos fornecido emprego a milhões, com as demais indústrias que nasceriam a reboque. Com impostos arrecadados ali mesmo, ainda poderia ter-se remediado a questão da seca; os grandes centros não estariam hoje soltando gente pelo ladrão, e o emprego estaria mais bem dividido pelas cidades de todo o país.

Não há como voltar atrás, mas o mau passo serve para pensarmos o futuro de forma mais generosa.

Minha sugestão é a seguinte:

Por que não permitir a abertura do jogo no polígono das secas, criando uma Las Vegas brasileira e fixando o retirante na região? Tudo seria financiado por empresários do show business, que esperam há décadas por essa liberação. Milhares de empregos seriam gerados durante as obras de execução, e posteriormente, com o funcionamento dos cassinos, restaurantes, teatros, etc., o cidadão local se readaptaria para trabalhar nas mais diversas atividades. Las Vegas, que foi um dia apenas um deserto inóspito, hoje é dos metros quadrados mais valorizados do planeta. Com o polígono pode acontecer o mesmo, e ainda promoveríamos, mesmo que tardiamente, a dignidade do homem que ali habita. Levar a vida como bailarino ou crupiê pode ser bem mais bacana que se equilibrar na corda injusta da fome.