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Uma irmã do sertão
Revista Época - 2005
 

A mãe dela havia morrido de crime. A minha também. Não importava. O impacto de um crime dói na época e fica lá. A coincidência que nos unia era outra, um segredo.

Há três anos, na Páscoa, fui fazer Maria numa encenação da Paixão de Cristo em Nova Jerusalém, interior do Pernambuco. A região é daquelas que a gente vê no Jornal Nacional quando ele resolve mostrar os limites do ser humano, com a terra seca de rachar o chão. Ali perdido no meio do nada há um imenso teatro ao ar livre - o maior do mundo - aonde todos os anos encena-se a saga de Jesus na sexta santa, sábado de aleluia e domingo de Páscoa. Parece um fenômeno místico que tanta gente se interesse em viajar tão longe pra ver um punhado de atores representando uma história batida pra caramba, mas o fato é que o público chega aos milhares e do mundo inteiro, tanto que os avisos de introdução ao espetáculo são dados em 4 idiomas. No ano em que estive, a atriz Flavia Alessandra fazia Maria Madalena, Miguel Falabella encarnava Pilatos e Luciano Zafir, Herodes. Um ator pernambucano, muito bom, era Jesus (esqueci seu nome porque na minha memória habita uma toupeira) e eu fazia sua mãe. Os soldados, centuriões e demais personagens eram vividos por atores de Recife, e as centenas de figurantes vinham das redondezas daquele sertão sem fim. Estes últimos eram uma gente simples e piedosa cuja vida, hoje, não difere muito daquela de 2000 anos atrás na Jerusalém de verdade.

Pra que isso fique claro, devo confessar que verter lágrimas em cena de novela não é coisa simples pra mim - as situações não me parecem a altura do ponto em que tenho que ir pra catar meu pranto. No entanto ali, olhando em volta aquela gente que também nunca aprendeu a chorar, a cada noite de Maria, me escorriam cataratas seculares. Chorei um mundo. Inundei o solo do sertão.

Um dia durante os ensaios que antecediam às apresentações, com o sol se pondo lá onde a terra termina, aconteceu uma conversa boa. A mulher caracterizada de "povo" tinha uns 40 anos, talvez 30, não dava pra saber. De seu ponto na cena, ela, havia alguns dias, me observava quieta e séria. Falei primeiro:
-É bonito isso que a gente tá fazendo. Dá um nó no meio do peito.
Pausa.
-É.
- Você é daqui da região?
-É.
-Tem família?
-Três meninas. O marido foi embora num voltou.
-Tenho uma filha também de dez anos, e não tenho marido. Sua mãe te ajuda a cuidar das crianças?
-Tenho não.
-Eu também não.
Pausa longa.
E eu:
-Você sente falta da sua mãe?
-É... Dá um nó no meio do peito.

Ela queria dizer mais alguma coisa, mas não tinha as palavras. Pra que não se perdesse o momento, cavei um pouco mais:
-A gente perde uma pessoa querida e fica aquele buraco, filho não preenche, amiga, marido, trabalho. É bom de ter mas não tira o buraco dali. A gente tem que se virar pra viver com aquilo dentro. Até hoje quando fica muito ruim, eu choro do esforço pra acostumar com as perdas que tive.
A mulher me olhou incrédula e depois de um tempo de perplexidade, disse:
-Eu nem sabia que podia chorar, choro escondida, nunca ninguém viu.
Pausa.
Posso pegar a sua mão?
Estendi a mão, ela pegou. Aquela cabocla e eu tínhamos um entendimento infinito de algo que nós duas, vidas tão distintas, sentíamos igualzinho.
Nos dias que seguiram conversamos de um tudo, rimos, contamos casos... Só não choramos porque ali ninguém era de fazer essas coisas. A Mãe de Deus era personagem, não contava. Eu mesma, assim como Tereza irmã do sertão, sou cabra macho - tem coisa que só escondida num intervalo do mundo...

Maitê Proença