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Era inveja
Revista Época - 2005
 

No Brasil três coisas são indiscutivelmente democráticas. A praia, que debaixo de um único sol junta madame e funkeira vestindo o mesmo uniforme. O futebol, que une o ladrão e o padre numa imensa fraternidade. E o trânsito, que bota o Zé do Chevete e João do Jaguar lado a lado, paralisados pela mesma encrenca. Das três brasilidades, o futebol é a que mais me intriga.

Tenho um namorado que ama a bola. É pessoa cheia de virtudes, mas, se há uma constância em seu caráter, é a impontualidade. Ele não consegue, o mundo atrapalha! Menos no caso do futebol. E não falo daquele jogo no estádio com hora ofi cial pra começar, refiro-me à pelada, ao racha, aquele bate-bola entre amigos, que no caso aqui de casa acontece três vezes por semana. O campo é longe, uma viagem, o sol a pino, não importa. Dia do compromisso, logo cedo, o moço fica ansioso, não pode atrasar e não há imprevisto que o segure. Nesses dias meu amor é um britânico!

Sábado desses resolvi ir junto. Os companheiros de partida não gostaram, mas, muito gentis, fizeram que sim (aquilo não é lugar de mulher, eu já devia saber). Pra compensar o mal-estar, começa o jogo e explodo em palmas, assovio, e tanto faço que o dono do campo (a quem eu bajulava escancaradamente) sentiu-se na obrigação de me dedicar um gol. O embate seguiu com altos e baixos, a coisa foi aquecendo, e pimba, um golaço. Aquele chutão do meio do campo a la Roberto Carlos. As más línguas, pra derrubar o artilheiro, falaram que era momento histórico, não se repetiria, e coisa e tal. Não acreditei! Foi uma jogada de mestre, eu vi e guardarei na memória. Continua a partida, com bons momentos, outros nem tanto, uma contusão aqui, uma falta ali, um corpo caído no chão, e de repente… me bate uma estranheza e percebo que, acima da bola, das jogadas, do corre pra lá e pra cá, o que mais se via ali eram discussões, ofensas, xingamentos. E uma roubalheira de fazer corar um palmito! A coisa chegou a um ponto em que tive a certeza de que, terminado o embate, os jogadores não voltariam a se falar. Ao final, entre vitórias e desilusões, todos correram para o vestiário. Juntos. Achei estranho, mas fiquei observando e escutando, sentada do lado de fora, e devo dizer que nem na feira se fala tão alto e ao mesmo tempo quanto num banheiro cheio de homens. Estariam brigando? Não parecia. Fiquei quieta do lado de fora esperando meu namorado, que, pela demora, tomava um banho de Cleópatra. De meu ponto de vista, pude observar os rapazes que agora saíam do vestiário risonhos, limpinhos, e, para minha surpresa, íntimos como colegas de infância. Os mesmos que há pouco se juravam de morte agora se pavoneavam uns para os outros aos tapinhas nas costas. A fauna era variada, com cantores, compositores, sapateiro, editor de jornal, ator, jogador aposentado, padeiro — tudo adversário de sangue na hora da bola e amigo do peito na saída pro chope.

Cheguei a uma conclusão: na pelada não há rancor, o que se passa em campo fica no campo. E não há pudor. Todo mundo ali é craque, o vírus da imodéstia ataca democraticamente. É uma beleza! Por isso eles gostam tanto.

Fui-me embora com um buraco no espírito. O que nós mulheres temos de parecido? O shopping, o salão? Não chegam nem perto. Não pode xingar, espernear, soltar os sapos da garganta… Além do mais, num e noutro, o máximo de exercício que se faz é com a língua, na futrica da vida alheia.

Não há como negar, o brinquedo dos rapazes é muito mais divertido, e nós mulheres não temos nada que se compare. E o buraco, aquele que mencionei há pouco… era de inveja.