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Primeira impressão
Revista Época - 2005
 

Como tem chinês na China. Esse negócio de que povo de olho puxado não gosta de certos assuntos é conversa fiada. Chinês gosta tanto que o governo foi obrigado a baixar medidas pra conter a explosão populacional, contudo, não se percebe os efeitos. Algo corriqueiro como atravessar a rua, ali, torna-se uma aventura — acende o verde pra pedestre, a turba vem na sua direção, e você, leigo desavisado, se sente num jogo de rugby sem ter pra onde correr.

A China é um pouco menor que os Estados Unidos mas tem cinco vezes mais habitantes. Acabo de chegar de lá e fi quei pouco tempo pra tirar grandes conclusões, mas meu palpite é que muito breve essa gente obstinada vai dominar o mundo. Aquele chinês calmo, espiritualizado, e desprendido de bens materiais, não se encontra pelas ruas. O que se vê é um povo que gosta de dinheiro e não tem medo de trabalhar pra consegui-lo. Acostumaram-se a pegar no batente doze horas por dia, ralando para o Estado sem hora extra e sem reclamações, agora com a economia aberta e trabalhando em benefício próprio, quinze horas de labuta viraram um passeio no parque.

Dar presente em forma de dinheiro é considerado um hábito gentil e generoso. No Ano Novo Chinês, maior feriado nacional, o costume é trocar envelopinhos contendo uma quantia em papel. Nos casamentos, idem, deve-se presentear os noivos com o valor aproximado que caberia ao convidado caso o custo da cerimônia houvesse sido rateado. Tudo muito prático. O enriquecimento do país é ostensivo e muito visível nas grandes cidades. A cada dois minutos nasce um arranha-céu, e Xangai, por exemplo, está cheia deles. São edifi cações modernas de um jeito que não há em país algum, porque, sendo futuristas, levam em conta o antigo feng shuei, e, sendo arrojadas, jamais deixam de lado a beleza e elegância das formas. Um arraso. Quando de noite tudo está iluminado — Las Vegas é brinquedo de criança perto da sofisticação das luzes de Xangai —, dá vontade de bater palmas.

Chinês é obcecado por grife. Nas cidades grandes as Gucci/Prada estão brotando feito mato. Também não é pra menos, se imaginarmos que há 25 anos aquele povo todo andava por ali de pijaminha azul, um idêntico ao outro, agora que podem mostrar suas diferenças, estão ávidos por fazê-lo, sobretudo quando estas passam pelo poder de compra.

Com os carros dá-se o mesmo. Num país onde antes só se andava de bicicleta, hoje há cada vez mais Mercedes circulando pelas ruas.

A província de Guangzhou é a mais industrializada da China. Incontáveis multinacionais estão se estabelecendo ali por encontrarem mão de obra laboriosa e barata. Curiosamente, ao contrário do que ocorre quando se estabelecem em outros países, a preocupação dos empregadores estrangeiros está em fi scalizar os operários para que não se excedam na carga horária ou no empenho com que se dedicam ao trabalho. Não fosse pela competição, que é imensa, culturalmente, o povo chinês exige demais de seus indivíduos — desde cedo pais cobram dos fi lhos um desempenho excepcional em todas as atividades. A pressão é massacrante, e entre as consequências está o alto índice de suicídios de adolescentes, porque estes, não raro, na hora de decidir o que vão fazer da vida preferem saltar para a morte. As estações de metrô têm portas de vidro nas laterais dos trilhos que abrem e fecham junto com as portas dos trens para impedir que jovens desesperados se atirem à chegada dos vagões. A notícia boa é que, quando se aguenta o tranco e fica-se velhinho na China, este vira um ser especial que a sociedade trata com deferência e afeto — é comovente ver nas ruas a atenção com que familiares tratam seus idosos.

Não conheci o interior do país e pretendo corrigir essa falha logo logo. Mas desta vez irei preparada, e, para tal, matriculei-me num curso de mandarim. Aprendi, na última incursão, que idiomas ocidentais não servem pra muita coisa quando se está na China. Tentar se expressar com gestos também não presta — chinês gesticula em chinês. Então, vou me esforçar com o yion shin shon do putonghua, e se não der tempo pra grandes progressos até à próxima viagem, ao menos estarei me preparando pro futuro — um mundo de olhos cada vez mais puxados.