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Pela hora da morte
Revista Época - 2004
 

Ninguém gosta de morrer. Minha vó, que era dura na queda, foi-se aos 103 — indignada! No entanto, o túmulo de Napoleão no Invalides, o dos Kennedy nas colinas de Arlington e o Taj Mahal de Agra na Índia são dos monumentos mais visitados no mundo.

Se o apego à carne é grande, o fascínio pelas coisas da morte mobiliza desde quando pessoas começaram a falecer — desde sempre. A própria indústria da morte é um baita negócio, que gera milhões. Há setenta anos, um sujeito abriu um cemiteriozinho nos Estados Unidos. Hoje a Service Corporation International, pertencente aos filhos desse sujeito, tem mais de 2 mil cemitérios e funerárias, é a maior empresa do ramo no mundo, e a 47ª do país em volume financeiro. A SCI está à frente da Coca-Cola, da General Motors, da Ford, Microsoft , Intel e Citybank, para citar alguns nomes conhecidos.

Como será minha última morada, quem me fará companhia, com que confortos sairei da vida para entrar no desconhecido? As pessoas pensam nisso, e gente mais pobre pensa mais. Com menos disponibilidade de dinheiro e mais previdentes, têm planos pelos quais pagam uma vida inteira a fim de não passar aperto nesse momento. É bom que o façam, porque morrer está pela hora da morte e não é qualquer um que pode se dar ao luxo hoje em dia. Um enterro modesto, sem coroa de fl ores, sem castiçais ou sofá para atravessar a noite, não sai por menos de mil e duzentos reais nas grandes cidades. Pra quem pode, o preço chega a trinta mil. São muitas as opções de coberturas para incrementar o sundae da despedida, mas basicamente há dois tipos de sepultamento, o jazigo alugado (de que falávamos), que é provisório, e o perpétuo, que o nome explica. No caso do primeiro, passados três anos, a família tem que encontrar outro canto para alojar os ossos do falecido — se não forem transferidos no prazo, a lei permite ao cemitério jogar tudinho (que a essas alturas não é muito) no ossário público, um piscinão fundo mantido pelas prefeituras para essa finalidade. Já com o jazigo perpétuo não se corre esse risco, ele é adquirido pelas famílias para enterrar gerações de entes queridos futuro adentro. Há opções de tamanhos — P, M, e G — disponíveis no mercado, com dois, quatro e seis espaços, ao gosto do cliente, à medida da família. Sejam quantas forem, abaixo das sepulturas há prateleiras para guardar os ossos mais antigos, abrindo-se, assim, espaço para os “jovens” que vêm chegando — é inevitável.

No Rio de Janeiro, onde vivo (benzadeus), há mais de dois milhões de jazigos com seus diversos tamanhos. Mesmo assim não é fácil encontrar algum que esteja disponível para compra nos cemitérios do centro da cidade, e por isso mesmo um perpétuo pode sair por gorda quantia a quem conseguir encontrar. Recentemente, um grande proprietário de supermercados conseguiu comprar o seu no badalado cemitério São João Batista, e pagou ao dono anterior o valor de duzentos mil, uma pechincha se considerarmos os inflacionados preços do mercado. Jazigos que ficam perto dos portões de entrada são mais chiques, enquanto os do fundão, caidões, saem bem mais em conta: por módicos trinta mil o sujeito tem onde cair morto.

A indústria da morte se sofisticou nos últimos vinte anos, e de lá pra cá são muitas suas fontes de renda. Além da venda da sepultura, aluguel da capela, loja de flores e restaurante, os atuais planos de assistência funerária oferecem, junto com o sepultamento em si, todo serviço de remoção do corpo, urna, ornamentação e custeio das taxas cemiteriais e municipais. A família paga de cinco a quinze reais todo mês, mas na hora H vão catar a criatura em Fernando de Noronha, se for lá que ela deu com os burros n’água. Não é nada não é nada, pode ser a única alegria num momento de sufoco. Sem os planos, a família tem que se virar com providências de alto custo e, futuramente, ainda pagar a taxa de manutenção do cemitério, uma espécie de condomínio de uns cem reais por ano — todo ano. Há cemitérios que não cobram taxa, mas, nesses casos, muitas vezes também não mantêm coisa alguma — não fazem limpeza, não oferecem segurança. Você corre o risco de chorar seu morto com uma pistola na cabeça. Pra quem gosta de aventura…

Portanto, se você, como eu, também se sente incomodado em organizar certos setores da vida (?), o negócio é ir adiando a Hora o tanto quanto possível. Indefinidamente, quem sabe…