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Fraturas
Revista Época - 2003
 

Tenho intimidade com consultórios médicos. Não que seja de saúde frágil. Além das doenças de infância, nunca sofri mais que uma gripe passageira. Mas fui me torcendo e quebrando ao longo dos anos. Quebrava ossos. Caía da escada, do cavalo, do carro, da moto. Uma briga na rua, um golpe no esporte, uma falta de sorte, e por aí foi indo. Fraturei coluna, fêmur, pulsos, nariz, dedos, pés, perna, tudo. Não criava juízo, e a mania de me quebrar foi virando parte da rotina da casa. Ninguém fazia muito caso, e sem heroísmos, sem quase perceber, fui me acostumando com cirurgias, fisioterapias e todos os efeitos colaterais da pessoa, digamos, energética que eu era. O tempo foi deixando cicatrizes, uns ossos entortados, mas no fim tudo acabava se colando e, por fim, voltava mais ou menos ao estado de origem.

Hoje, após tantos infortúnios ortopédicos, não cheguei a tomar jeito, porque o jeito é o que a gente tem de mais íntimo e isso não muda mesmo. Mas aprendi a prestar atenção quando me meto em situações de risco. Achei até que poderia contabilizar esse amadurecimento ortopédico como um dos pontos positivos dos meus quarenta anos. Tenho tentado encontrá-los — dizem que existem. Mas ainda não foi desta vez. Outro dia, andando de bicicleta pela orla, fui atropelada por um moleque, voei, aterrissei no pulso e… escafoide, três meses de gesso. Gesso, doutor? Aquela coisa antiga? Nem fica bem a esta altura! Pois foi aquilo mesmo que ele me colocou. Com a desvantagem de que hoje a coisa é de plástico e nem dá pros amigos escreverem bobeiras pra gente ler e passar o tempo.

É difícil encontrar as vantagens da idade. Nas entrevistas, as personalidades dizem: estou mais madura, mais sensata, sou menos angustiada e muito mais segura de mim. Mas segura de quê? Eu ando num baita balanço. Por que meus casamentos não duraram uma vida, por que não tive mais filhos, formando uma grande família feliz, por que não dei outro rumo à minha carreira quando choviam oportunidades, por que não fui mais gentil com as pessoas, por que não bebi menos e percebi mais? Por que hoje há tantos porquês onde antes havia apenas um dia após o outro?

Além do mais, como ficar segura se, mesmo cheia de saúde, não paro de ir a médicos? Se antes só conheci peritos em ossos, hoje os visito de todas as especialidades. Dermatologista, ortomolecular, endocrinologista — uma corrida contra o tempo nesta vida de clichês. Francamente, cansei. Vou me mudar para o Afeganistão. Lá sim eu serei querida pelo que sou. Digam o que disserem, é um país respeitoso da condição da mulher. Um socialismo estético, igualado pela divina burca, que, assim como o uniforme de escola, não permite distinções entre o rico e o pobre. Democrática, a burca iguala belas e feias, espinhentas e lisinhas, jovens e caquéticas. Viverei livre das cliniques e lancomes. Além do mais, estarei sempre cercada de amigas queridas, naturais e desprendidas de tanta futilidade. Seremos irmãs dividindo um mesmo marido — que lindo! Uma união sem cisões, sem fraturas no nosso harém de harmonia. Com o nosso marido querido… Querida… Maitê…, ei, Maitê querida, tá na sua cena. Acordou? Dá uma retocada no rosto, você tá parecendo um cachorro chinês.