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Esquisitices
Revista Época - 2004
 

Outro dia me apareceu uma criatura, amiga de colégio que eu não via desde então. Estava no Rio, queria me encontrar. Por sugestão dela, marcamos numa pizzaria. Olhei em volta no bar, nas mesas, e não percebi qualquer um que se parecesse com minha colega. De repente Ana pulou na minha frente — susto —, eu a vira setenta quilos atrás, estava imensa, era assustador. Tentei ser natural, usando minha coleção de sorrisos amarelos para-momentos-de-aperto. Sentamo-nos numa mesa do restaurante que servia em sistema de rodízio. A moça era ansiosa, esquisitona, barbada, e eu estava metida num belo programinha de índio (sem desmerecer os rapazes da tanga, raízes de nossa pátria). A coisa ia durar, resolvi, para enriquecer o momento, contar a quantidade de pedaços de pizza que minha colega engoliria naquela noite. Havia uma tendência ao exagero, mas jamais teria imaginado… Ana, minha amiguinha de colégio, botou goela abaixo 29 pedaços bem servidos. Misturava calabresa com pizza de chocolate numa sem-cerimônia de corar o rei momo. Saí do encontro balançada. Não tenho nada contra gorduchos, que comam se lhes traz prazer, nem todo mundo quer o corpo da Cindy Crawford. Só que no caso de Ana havia algo além do prazer.

Pus-me a pensar nas compulsões. O que leva a pessoa a se entupir de álcool, por exemplo, quando o estômago já está satisfeito desde a terceira dose? Tenho amigos que bebem furiosamente há anos, mantendo a aparência milagrosamente intacta numa espécie de efeito picles. São os compulsivos conservados. E há as compulsões que moram do outro lado dos excessos. É o caso das anorexias, da bulimia e das drogas que levam o sujeito pra Marte, tirando a fome e encobrindo as necessidades do corpo. Parece que nos compulsivos há o desequilíbrio de um hormônio que avisa quando o corpo está satisfeito ou o contrário. Faz sentido, e pode ser que esteja surgindo aí uma explicação química pra tanta ambiguidade.

Também tenho minhas esquisitices, e não são poucas. Tenho insatisfações e coisas que gostaria mas não posso consertar. Gostaria por exemplo de ter mais 5 centímetros de perna, ou a cintura da Marylin, e cultura, ah sim, muito mais cultura — como seria bom lembrar qual das Natashas me comoveu mais, se a do Tolstói ou a do Dostoiévski, mas a memória fugiu e levou tudo com ela. Sobram lembranças bestas nos buracos negros onde antes viviam os livros e as fi losofias que fi zeram a minha cabeça. É triste, mas nem por isso meu corpo pede oito cheesebúrgueres para preencher as lacunas. Se ao menos minhas frustrações servissem para ajudar a compreender os abismos do outro, a enfermaria do lado… mas que nada.

Então, já que o que reside além do próprio umbigo é mistério do campo das especulações, resta-nos celebrar as diferenças. Sugiro a criação de um dia mundial do desajustado. Que saiam às ruas gorduchos infelizes, magrinhos carentes, ansiosos e frustrados de toda espécie. Que se libertem as Anas de nossas infâncias, os compulsivos e obsessivos, malucos e caducos. Que se soltem os diferentes num grande carnaval do desajuste, e exponham-se orgulhosamente pelas ruas deste mundo. Que a festa seja libertadora!

E se nesse dia sobrar alguém que não se encaixe em categoria alguma, então, que do alto de sua solidão atire-nos a primeira pedra.