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Engano Fatal
Revista Época - 2004
 

Há um ano a avó de minha filha, ex-sogra e espécie de mãe, foi internada numa clínica com pneumonia e saiu morta. Há uma semana minha tia foi internada num hospital com anemia e morreu. Começo a achar que os centros hospitalares de minha cidade são lugares muito perigosos para se estar.

Dois dias antes de Carminha ser hospitalizada, fomos juntas à primeira comunhão de minha filha - rodeada de familiares, ela estava alegre e encantada com o ritual, mais importante pra ela que pra nós a sua volta. Nos dias a seguir, minha sogra sentiu-se fraca e foi internada na mais renomada clínica do Rio de Janeiro para exames de rotina, onde constataram uma pneumonia. À noite serviram-lhe uma refeição. Por não ser compatível com os remédios prescritos, por não estar suficientemente fresca ou na consistência certa, sei lá, aquilo foi expelido de seu organismo. Ao vomitar Carminha engasgou e bronco-aspirou uma parte do alimento. Nos procedimentos para livrar-lhe do engasgo houve uma parada cardíaca, entubaram-na e botaram-na pra dormir. Acontece que uma partícula de comida foi parar em seu pulmão provocando uma infecção, que, por sua vez, espalhou-se por todo o corpo.

Vários dias se passaram, inúmeras intervenções foram praticadas sem sucesso, e assim por complicações num quadro a princípio sem gravidade, minha sogra morreu. Se não houve má fé em seu tratamento, o mesmo não se pode dizer quanto ao zelo e rigor que a situação inspirava. Nas vezes em que surgi no Centro de Tratamento Intensivo sem aviso, não encontrei um médico sequer que soubesse me explicar, sem evasivas, o estado real da minha doente.

Além do mais, há desleixo no CTI.

Numa das ocasiões, lá pelas 11 da noite, eu ali imaginando se haveria saída praquela senhorinha que naquele instante era mais querida do que jamais me dera conta, deparo com um motoboy vindo da rua com encomendas para os plantonistas. Nenhum cuidado, nenhuma assepsia, o rapaz simplesmente adentrou a sala dos moribundos vulneráveis como se chegasse à casa da mãe dele, entregou as pizzas e partiu.
E há abusos.

Carminha esteve na CTI por um mês. Nesse período seu médico achou conveniente passar duas semanas de férias em Paris, deixando um assistente no lugar. O rapaz fazia visitas diárias para verificar o estado de minha sogra que dormia enquanto seu estado deteriorava num coma induzido. Quando o especialista voltou de seu séjour europeu para entregar-nos um cadáver, junto com o corpo, entregou-nos tb a conta onde as consultas médicas, para citar um item, montavam à módica quantia de R$16000 - R$800 por visita.

Já minha tia Norah era uma jovem senhora de 84 - na minha família qdo permitimos que a natureza imponha seu jeito, as pessoas só empacotam depois dos 100. Semana passada, sofrendo de anemia, ela foi submetida a uma transfusão de sangue, coisa corriqueira eu imaginava. Ingenuidade. O enfermeiro ao perfurar sua veia atravessou-a permitindo que vasasse sangue para fora do canal.

Principiou-se assim uma infecção no punho, que ao se alastrar pelo organismo, e fazê-la sofrer bastante, matou-a. Titia que na semana anterior tomava chopp com os amigos na Cobal, quatro dias passados da intervenção médica feita para fortalecê-la, encontrava-se numa fila de defuntos esperando a vez (e a burocracia) pra ser cremada no cemitério do Caju.

Na minha dor devo indignar-me ou anestesiar-me como parece fazer a classe médica diante dos recorrentes equívocos irreversíveis que os envolve diariamente? A estrutura é ineficiente e fica tudo por isso mesmo? E eu tenho que engolir essa gente que pratica uma medicina burocrática contaminada pelo descaso?

Há 350 anos Molière escreveu O Doente Imaginário onde médicos inescrupulosos se aproveitavam da hipocondria de um paciente para inventar-lhe doenças sem fim. Desfrutando da entrega e ignorância da pobre criatura, tratavam-na com purgantes e sangrias enquanto arrancavam-lhe o dinheiro e o sossego.

As coisas parecem ter mudado bem pouco nesses três século e meio. Há os Herbert Viana, benzadeus, mas quem aí não conhece um caso como os que provocaram mortes na minha família?

Até quando?