A A A
O Encurtamento
Revista Época - 2005
 

Ando totalmente sem paciência com o narcisismo que tomou conta do país. As pessoas estão cada vez menos interessadas no que as cerca e mais motivadas pelo que for reflexo de si. Encantam-se em saber que outros comentam seus feitos ou defeitos, e babam qdo se vêem projetadas na mídia através de semelhantes que ali conseguiram espaço pra exibir seus vazios.

Pelo mesmo motivo a gente perdeu a graciosidade que antes sobrava e agora só gosta mesmo é de discutir problemas. Todos reclamam sem parar de picuinhas e mazelas, pq nesse exercício enfadonho mantêm-se cercados de si. Desdobram infinitamente as questões mais simples numa masturbação semântica que só leva de volta ao umbigo - é uma gentinha boba que briga, discute e reside em justificativas, ao invés tentar a solução dos problemas. É por isso tb que nos serviços públicos as coisas simplesmente não funcionam. Narciso só gosta de somar forças se ele puder ser o chefe, como subordinado ele é incapaz de co-operar. Então o narcisista justifica sua inabilidade para produzir atribuindo ineficiência ao outro. E por aí tudo se afunda em bla bla blas de empura empura e equívocos sem fim. A sociedade é quem paga o pato.

Quando eu era pequena faltava luz e água na minha cidade e pra se fazer um telefonema interurbano esperava-se às vezes um dia inteiro. O hemisfério norte mostrava o homem pisando na lua enqto nós aqui esperávamos uma linha da telefonista pra conseguir falar uns com os outros. Foram os militares que construíram Itaipu e criaram a Telebrás e a Embratel, e com tudo que se pode dizer contra o regime totalitário, não há como negar que essas e outras empresas estão aí funcionando bem até hoje. Como diz Caetano, a incompetência da América católica necessita de ridículos tiranos. Mas até quando?

Bom, lá na península Ibérica onde tudo começou, tanto Portugal como Espanha livraram-se de seus ditadores e resolveram se tornar europeus de verdade. Foi preciso largar antigos vícios e aprender à mecânica da co-laboração mas, feito isso, estão conseguindo. Então, se lá onde o egoísmo narcíseo era mto mais enraizado, o processo já deu resultados, quem sabe não há chances tb pra nós aqui na colônia?

Proponho que se comece pelo individual.

Vc conhece o exercício do encurtamento?

O porteiro criou um baita caso pra seu amigo subir ao apartamento. Ele conhece seu amigo, já viu mil vezes, pq então essa encrenca? Há uma discussão no interfone. Dia seguinte vc sai do elevador, e Seu Zé está lá de tromba, esperando o desdobramento da história. Tem acusações e justificativas na ponta da língua. Mas vc olha pra ele e encurta, "que esplêndido dia de sol hein Seu Zé. Tenha uma ótima manhã!" Aí, vc segue pro trabalho tranqüilo e Seu Zé, desarmado, trata de trabalhar direito pq, sendo vc um cara legal, deu vontade nele de agir assim.

Ou então:
Vc está no bate-boca com a namorada, as razões de ambos os lados já foram repassadas infinitas vezes, não vai se chegar a lugar algum. Então, vc olha pra parede e muda de assunto, "sabe que vc está certa amor, quer pintar a casa de amarelo, pois vai ficar mto mais bonita mesmo, te amo".

Dê uma de doido e evite uma discussão. Engula um sapo, desapegue-se do nó, encurte! Quem sabe assim, girando menos em torno de si, dê tempo pra olhar em volta e perceber que há um mundo pulsando lá fora a espera que a gente se integre, contribua e colabore?