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A droga do vício
Revista Época - 2005
 

Nunca foi tão comprido o corredor. Ficava no corpo central da casa e ligava a sala ao quarto onde o pai foi encontrado morto dois anos antes. Leonora vira o corpo machucado estendido no chão. Agora quem vivia ali era o irmão, morava sozinho na casa imensa, e, com tantos quartos, preferia dormir naquele canto macabro. Era ao encontro dele que Leonora caminhava. Há três dias procurava por Antônio — telefonemas, campainha, murros na porta, gritos, e nada. Tinha motivos de sobra pra imaginar que estivesse morto também. Ela havia escalado a parede da frente e entrado pela janela do mezanino apoiada nas costas de um amigo que preferiu ficar do lado de fora, por medo do que poderia encontrar dentro. Ao forçar a janela deparou com vinte centímetros de sujeira grudenta esparramada pelo chão. Eram restos de comida misturados com fotos de família, bitucas de cigarro, colher queimada, isqueiro, papel-alumínio, e a porcaria toda usada pra preparar o vício. Desceu à sala e foi ao encontro do corredor. Os joelhos desarticulavam-se a cada passo, arrastando chumbo pelos pés. O coração batia fora de lugar, descompassando-se entre uma omoplata e outra. E o corredor ali… imenso caminhar à sua frente. Andou. Pensou nas fotos que vira há pouco. Não eram da família propriamente, mas das mulheres da família. Havia um retrato de Consuelo, mãe deles, fotos dela mesma, e de Nina, sua filha e sobrinha de Antônio. Como é triste alguém ter de enlouquecer para relacionar-se com pessoas que o amariam mais se estivesse sóbrio e perto. Deu mais alguns passos e lembrou-se do vestido de bolinhas azuis que Consuelo escondia dentro de uma caixa de sapatos no fundo do armário. Por que fazia aquilo? Era tão bonito, e ela o havia usado apenas uma vez pra tocar piano em casa numa hora em que não chegaria ninguém. Mas Leonora chegou e viu. Viu também quando logo em seguida a mãe trocou-se e guardou o vestido no lugar estranho. Mais um passo pelo corredor e avistou uma girafa a beber água na savana — mantinha abertas as pernas da frente para alcançar a poça —, é nessas horas que são atacadas, coitadas, ficam vulneráveis assim, apesar do tamanho… Aproximava-se do quarto, e agora era a imagem do irmão que embaçava seu olhar num piscar de coisa ruim. Sai, ordenou! Empurrou-se. Faltava apenas um passo e a porta logo à frente encontrava-se escancarada. Segurou-se na parede, firmou as pernas, expirou fora o vazio que sugava seu corpo pro chão, e entrou. Antônio estava caído na cama. Torto e seminu, arfava fortemente. Não estava morto, benzadeus!

Não estava morto. Canalha!

Ia dar-lhe um chute quando de repente:
— Senhora, senhora, seu irmão acordou, está lhe chamando. Leonora olhou em volta o quarto de hospital e fixou o olhar na cama que abrigava Antônio imobilizado, os olhos vendados.

Eram tão felizes quando crianças, o futuro ia ser perfeito… Em que ponto o destino torcera as coisas?

Dizer que o uso de narcóticos deixa as pessoas imprevisíveis é um lugar-comum equivocado pra caramba. A droga deixa as pessoas muito previsíveis — até o rumo que a vida toma na hora em que se opta por ela é previsível de dar dó —, porque há uma hora em que se faz a opção. Leonora lembrava-se das intermináveis sessões nos Narcóticos Anônimos para salvar o irmão. Os outros familiares ali com seus drogados-privé, tentando, ainda, protegê-los, pobres vítimas de um mal maior. Vítimas coisa nenhuma! O drogado quando se frustra enfia mais uma dose na veia e se joga num canto chapado. Quem sofre é o que aguenta do lado de fora, lúcido, e que por amor vai faxinando a imundice deixada pelo outro em sua dulcíssima inconsciência. Quem sofre é o que escuta um caminhão de desculpas, mentiras e agressões, e ainda assim paga o agiota, se entende com a polícia e durante anos sem fim lida com um submundo que não escolheu, porque é só o que lhe resta fazer. Coitadinho do viciado é o escambau!

— Senhora, seu irmão está agitado, quer lhe falar.
Leonora se aproximou da cama.
— Estou aqui, Antônio.
— O que aconteceu?
— Você dirigia a moto drogado, teve um acidente.
— Por que a cabeça enfaixada?
— O guidom entrou no lóbulo ocular, tiveram que arrancar fora um de seus olhos.
— Não quero mais viver.
— Então continuamos na mesma, você nunca quis.

Não é verdade que o amor seja um sentimento incondicional, há hiatos no amor. Tem horas em que a tolerância, a generosidade e as virtudes que o acompanham sucumbem às circunstâncias. Tem horas que você quer ver o seu amor morto porque seria um alívio. Esta é a verdade.

Depois o momento passa e a gente ama bonito outra vez.

Ou não.