Hoje seria aniversário de Dina Sfat.
Como eu, Dina era atriz — e aí acabam nossas semelhanças. Não penso como ela, não olho a vida da mesma forma, não tenho seus questionamentos, sou toda outra. No entanto, compreendo-a, concordo com ela mesmo quando não concordo. Ela é brava e severa, e eu gosto disso. Há nela algo de frio que me é quase familiar.
Dina é esplêndida e fascinante.
Não escrevi nada do que vai aí abaixo, nem poderia tê-lo feito, isto é uma colagem de frases pinçadas da biografia escrita a quatro mãos com Mara Caballero e de entrevistas que ela deu
ao longo dos anos.
Posso colocar no meu livro de crônicas uma não crônica da Dina Sfat?
Posso.
Estou sentada na cama agora. São lindas estas meninas. Elas não são muito afetuosas comigo. Cheias de desconfiança. A mãe forte que se vira sozinha não precisa de muita festa. Não farei nada para mudar isso.
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O amor? Existe na minha imaginação. Quero um adulto, apaixonado, e livre como eu. Disponível. Não existe.
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Meu destino é teatral: esse é o caminho. Fico forte, do meu tamanho, nem menor nem maior.
Queria fazer um espetáculo não é falando de esperança, porque a esperança é uma coisa que transfere a responsabilidade.
Hedda Gabler é uma mulher fascinante e extremamente cruel, reprimida e que passa a reprimir os outros. A gente tem horror a ela: é grossa, incômoda, mas ao mesmo tempo é fascinante,
bonita, inteligente e tem senso de humor. Dá a volta completa. Fazer essa mulher me dói o pescoço.
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O modo como fiz psicanálise desembocou numa das maiores psicanalistas do Rio de Janeiro. Ela me dizendo que eu me fiz um câncer. E eu disse para ela: mas então fizemos a quatro mãos.
Como um bom crochê. Porque os últimos anos eu passei aqui, no teu consultório. Será que sou tão poderosa e tão forte, que você não detectou nestes anos todos que, enquanto nós conversávamos, eu armava esta cilada para nós duas? Porque então o meu câncer não é só meu. É meu e teu. Fizemos juntas… Somos vítimas desse mesmo câncer, do qual você, hoje, me dá direitos autorais absolutos. Eu não quero! Eu trabalho em cooperativa neste assunto!
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Quando a gente fica gravemente doente, a primeira coisa é ter consciência de que precisamos dos outros. Em todos os níveis. E vemos as mais diferentes reações. Há os que fogem pois têm
medo de contágio e não te beijam, acham que câncer pega; os que querem ajudar; os que ficam contentes com a tua doença. Quando cheguei do hospital, minha secretária eletrônica havia
gravado uma gargalhada de mulher que não acabava nunca.
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Quando cheguei na psicanálise eu ostentava um mito. Que eu era. E ela foi desmoronando esse mito. Eu quis que ela desmoronasse, eu permiti. Mas hoje bem que sinto falta desse mito. Isso me ajudava a viver para caramba.
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Há tantos anos que eu tento ser natural e normal. Mas eu não sou, não sou. E não sou porque não sou. A minha natureza não era. Eu não fui uma pessoa da minha família. Eu sou uma desfamiliada. Eu sou um ser humano solto no espaço, e faço uma profissão que me põe ainda mais fora da nave. Eu faço a comédia das sete na novela das sete, e no entanto eu viajo… Eu
viajo o destino do meu personagem e o adoto como sendo o meu destino… Só que eu não sei a cabeça do autor para onde vai… Mas no momento que ele passa para mim, já não é tão onde ele
ia, já é onde eu quero conduzir… Aí isso vai para o editor, que edita isso diferente. Ferra o autor, me ferra, e cria uma outra viagem… E o público ao assistir entende diferente e vem me contar uma coisa que eu nem sei mais como é.
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Se não tenho pares, eu que fique falando sozinha. Tenho 27 anos dessa profissão, já fui jovem, não sou mais, já fui a mulher mais sexy do Brasil, tô tranquila. É que o Brasil tem um defeito gravíssimo… que é o seguinte. Eu fiz um programa na União Soviética para o Globo Repórter. E o último segmento do programa era uma entrevista com Nureyev, feita aqui. A entrevista foi assim. A repórter pergunta: “Então o que é isso, fazer 50 anos?” Ele fala: “É isso, 50 anos. A gente tem um tempo de juventude… Eu passei 17 anos dançando com Margot Fontaine que foram os mais felizes da minha vida… Hoje lembro com muita saudade desse tempo. Mas sou consciente de que tenho 50 anos e deixo a Natureza agir.” Ele fala isso e congelam a imagem. Aí eu pensei: é o fim da entrevista, que bonito! Mas eu me enganei, eu estava no Brasil. A entrevista continua, só que aí mostra ele dançando com 23 anos de idade, como um deus, o maior bailarino do mundo, e entra a voz da repórter dizendo: “Ele não quer reconhecer mas é evidente que deve sentir muita saudade do tempo em que tinha 23 anos de idade.” Isto é o Brasil!
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Por que você está debaixo da ponte quando ela desaba? Porque você estava simplesmente passando por debaixo da ponte. Azar o teu! Por que não você?
Eu tenho pavor de autopiedade, que é um sentimento péssimo, não é nada teatral. Autopiedade é um sentimento vagabundo. Dentro do trabalho da gente, um ator com autopiedade não comove
ninguém. Você entra no sentimento das outras pessoas por outros caminhos. Se você ficar com autopiedade, chorando, chorando, chorando, as quinhentas pessoas da plateia ficam assobiando.
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No momento em que acaba o corpo, acaba a alma… Não é que acabe dessa forma em que eles convivem aqui, e depois vão existir numa outra forma… Vira pó… Vira assombração… Vira alguma outra coisa que não me interessa. Cada dia estou menos interessada no que acontece depois da morte. Estou muito mais interessada na vida…
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Desculpem, eu levo muito a sério a vida. Eu não sou divertida!