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O menino bom
Revista Época - 2004
 

Era um dia ensolarado e sem trabalho. Tomei café, catei os jornais, fui à praia, corri com a cachorra, li as notícias, nadei mil metros, almocei em casa com uma amiga e saímos pra uma sessão da tarde. Eu, que em geral pago os gastos nessa relação, resolvi não botar a mão no bolso — nem pro táxi, nem pro filme, nem pro chá depois do filme. Voltamos pra casa e toca o telefone. — É da casa da Maitê? — Quem fala? — Encontrei a carteira dela caída na rua e gostaria de devolver. — Espera um minuto. Vasculhei a bolsa, virei do avesso. A carteira estava faltando! — Como você descobriu o número do telefone? — Estava dentro de uma divisão na carteira dela. Tive que olhar pra poder devolver. — O que mais tem dentro? — Dois cartões de crédito, 278 reais, uma foto e papéis. — É Maitê quem está falando. Você vai me devolver tudo isso? — Eu gostaria, mas você pode ligar antes pra minha mãe? — Não é você quem vai me entregar a carteira? — É que eu sou menor, tô sozinho no apartamento e minha mãe só deixa eu dar o endereço daqui se você falar com ela primeiro. A mãe do menino estava com medo de que aquilo fosse uma armadilha. Reconhecendo-me pela voz, acalmou-se, deu-me as coordenadas e lá fui eu atrás do último menino honesto do Brasil. O taxista que nos levava (a amiga continuava ali, fazendo papel de amiga) lá pelas tantas não se aguentou e começou a dar palpites: — Quem pode estar caindo numa roubada é você, hein, nunca vi disso. A gente mesmo às vezes devolve uma bolsa no correio, mas antes tira o dinheiro que tá dentro, porque, pra ficar com o funcionário do correio, melhor comigo, né? Agora esse moleque vai te entregar tudo assim de mão beijada… isso tá me cheirando a sequestro. Era princípio de noite quando chegamos ao prédio indicado e, apesar dos prognósticos do taxista, meu sentimento era de confiança. A amiga estava tensa. E o novo integrante do nosso grupo vibrava com animação macabra: — Vai tranquila que eu estou te olhando. Eu havia combinado de telefonar assim que chegasse pra que o menino descesse. Ninguém atendeu. Na portaria do prédio tampouco alguém dava sinal de vida. Começava a ficar tensa quando de repente apareceu um garoto de uns 15 anos, grandalhão e tímido, com minha carteira na mão. Nervoso pela situação e por estar lidando com a moça da TV, ele havia confundido o combinado. — Você me desculpa, tá? Toma sua carteira. — Puxa… estou muito impressionada. Fica com o dinheiro, uma parte ao menos, pela sua honestidade. — De jeito nenhum. Eu gosto muito de você, mas nem é por isso. É que assim é certo. Ondas de orgulho pela raça humana! Inundada de amor, saí dali querendo ver gente. Rumei para o Fashion Rio, que acontecia na cidade, e acabei num desfile que juntava, na passarela, modelos de olhar distante a surfistas de gingado solto, e halterofilistas tensos com meninos de rua. Na plateia e nos corredores do evento, uma gente linda, uma gente fútil, e um intenso frisson a celebrar as superficialidades do momento — tudo a ver com a com o espírito da corte que a cidade maravilhosa nunca deixou de ter. Histeria, ohs, ais, aquilo me deu vontade de fugir para o avesso daquilo e, ao me dar conta, me vi sentada nas arquibancadas do Maracanã. Era noite de decisão. Cercada pela ausência de limites que há na plebe in natura, fui me deixando integrar ao aglomerado até a perda de identidade — que descanso!, estava mais uma vez naquele dia, no lugar certo na hora certa: não há ponto mais perfeito que este campo de explosões para se contemplar e amar o homem em seu estado puro. Oh, vida esplêndida! E, como minha gratidão a essa altura pedia comida pra seguir pulsando, e que é inverno apesar do calor, e que meus interiores finalmente solicitavam silêncio, fui jantar num restaurante suíço, e, acompanhada do meu amor (a amiga retirara-se na etapa do Maraca), comi perdiz e tomei vinho até o mundo se anestesiar. Manhã seguinte, em paz com os contrastes da vida, enviei um presente bem bonito pro garoto correto e bom.