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Coliformes
Revista Época - 2004
 

Ando estranhamente interessada na questão dos esgotos, daqui e do mundo, penso neles diversas vezes ao dia. Somos 6,5 bilhões. Cada dia mais pessoas comem hambúrgueres, cachorros-quentes, fandangos, cheetos com refrigerantes, e outras delícias estimuladoras das ondas peristálticas. Os sistemas públicos de esgoto — do Rio de Janeiro em especial — encontram-h-se em estado deplorável, já que pouco interessa aos governantes fazer obras debaixo da terra. Então vamos lá: todo fim de semana o pessoal se entope de picanha, linguiça, caipirinha e Brahma. E eu me pergunto, como se comportarão os eflúvios subterrâneos numa manhã de segunda-feira em Copacabana, por exemplo, entre o café certeiro e a saída pro trabalho? E se um dia der pane no sistema, o que será do bairro? Da cidade maravilhosa? Assustada com as sinistras considerações, reuni-me com amigos sanitaristas e bombardeei-os de perguntas, não só sobre o destino do cocô (material orgânico sólido, se preferir), como também sobre o sistema de águas potáveis e pluviais da cidade.

Você sabia que Estácio de Sá, o fundador do Rio de Janeiro, morreu de flechada na luta pela água de um rio que desembocava na praia do Flamengo? Os portugueses resolveram fazer uma casa de pedra pra proteger a água que até então fora de uso exclusivo dos Tamoios. Os índios, desgostosos, desceram o morro furiosos, atacaram a casa e mandaram o Estácio pro brejo (com trocadilho, por favor). Foi nesse momento histórico que nasceu a palavra carioca, já que durante o ataque, enquanto os índios gritavam “cari-oca”, que vem a ser “casa de branco”, os portugueses, sem entender bulhufas de guarani, supuseram que fosse aquele o nome do rio. Não era, mas passou a ser, e ainda virou denominação pra toda a gente que nasce aqui. Já o rio Carioca, cara-pálida, acabou mesmo na mão dos lusos, tendo suas águas canalizadas para chafarizes que até hoje funcionam na praça Quinze e na Cinelândia.

Naquela época, era notória a falta de civilidade carioca. Oh! Moradores davam um berro de alerta e lançavam do alto das casas despejos que corriam pelo canto das ruas, ao ar livre, em direção ao mar. Logo as ruas passaram a ser construídas de forma abaulada para que a chuva e a sujeira se dividissem e escorressem pelas laterais (e é por isso que esses cantos passaram a ser chamados de meio-fio). Lógico que essa imundice causava um baita mau cheiro, gerava ondas de mosquitos, e, naturalmente também, provocava epidemias sem fim. Então, em 1864, foi inaugurada, com capital inglês — naquela época o Brasil era um bom negócio, o país do futuro! — e com a presença do imperador Pedro II, a terceira rede de esgotos sanitários do mundo, precedida apenas por Hamburgo (1842) e Londres (1815). Essa rede, com suas ampliações, é a mesma que funciona até hoje do centro da cidade até o bairro de São Conrado. Naqueles anos, um emissário móvel, ou seja, uma balsa, saía diariamente da Marina da Glória e despejava no meio do oceano toda a intestinália dos ilustres moradores da capital federal. Hoje o emissário é fixo e fica em Ipanema, enviando 540 milhões de litros de esgoto 6 quilômetros mar adentro. O restante da cidade, Barra da Tijuca, Baixada, Campo Grande, etc., não tem redes de esgoto funcionando, pois perpetuam-se em estado de execução — lenta — há anos. Os responsáveis pela intestinália nessas áreas são os loteadores de condomínios, que, tendo se comprometido a tratar seus detritos antes de despejá-los nos rios e lagoas, simplesmente não o fazem. Oh! Há também o problema das construções irregulares, e de favelas inteiras, cujo esgoto corre em valas abertas e caem nas redes pluviais, feitas para encaminhar água das chuvas, mas que acabam coletando e descarregando a sujeira de ligações clandestinas nos rios e na beira das praias. O problema é sério e as leis das metrópoles brasileiras são frouxas. A água limpa do planeta é pouca, e não é preciso pensar muito para concluir que água contaminada mata mais que bomba. Por isso, nos Estados Unidos, meca do capitalismo, quem cuida das águas e esgotos é o Estado. Água lá é questão de segurança nacional. Já aqui, na meca da esculhambação, fica tudo ao deus-dará.