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Ciúmes
Revista Época - 2003
 

Esqueci de contar que vi o filme da Frida Khalo. É lindo. O amor dela é do tamanho do nosso, e o Caetano cantando é do tamanho do mundo. Vá ver, passa um rio pela alma. Diogo Rivera seduz e seduz, e um dia é com a irmã dela que se deita. Eles rompem. A Frida se cansa de ele nunca fazer concessões ao amor, cansa de compreender, sabe? Porque dói. Eu também, o outro dia me doía tanto tudo. Parecia que um líquido vital saía de dentro de mim e, à medida que o sumo grosso ia escapando, meu corpo sentia uma espécie de torpor, ia dando uma paz sublime, e eu percebia que a dor estava indo embora junto com a vida. Delícia. Deve ser por isso que as pessoas se viciam em morfina. A Frida se viciou. A dor dela era física mas era de amor também.

Por falar nisso, eu achei muito feio o que aquela moça fez. Essa mesmo, de nosso último desacerto. Nós a recebemos juntos em casa há tão pouco tempo. Eu agradei o filho dela e nem percebi que vocês estavam se olhando pelas minhas costas. Estavam? Ou ela pulou no seu colo assim que soube que você estava semi disponível, a puta? É isso mesmo, quem fica com o amor da gente é sempre puta, não dá pra negociar. Tá bom, “aquela vaca” também serve. Na piscina ela te olhou e me disse que te achava gordo e careca. Morri de rir porque você está mesmo um tanto quanto, mas olhei de volta e te achei todo lindo. Aquela vagabunda (também dá) estava fingindo desinteresse! Você acha que sou vulgar? Ora, amor, comecei toda doce, mas o sangue me subiu e o nível caiu, sorry — pela rima. Além do mais, a discrição e o altruísmo são sentimentos nobres, mas numa hora dessas quem faz uso acaba com um bom par de úlceras. Você contou praquela… moça — tá certo, ela é bonita e boazinha, mas aviso que é destituída de senso de humor, hein. No quesito graça, ela pesa três toneladas. Tá bom, eu estou com ciúmes — duas toneladas…, é um hipopótamo de seriedade, há há há. Ok, parei. Só mais uma coisinha, eu a encontrei outro dia numa festa. Quase tropeçou ao virar a cara por não ter coragem de me encarar. Estava acompanhada do rapaz que a carrega a eventos públicos para não parecer encalhada. É um bom sujeito, e lhe confere o status que sozinha não teria. Quer dizer, ela o usa, e por trás… É uma desclassificada, duplamente puta. Você me pede calma!? Não devo sentir ciúmes, sou o amor da sua vida, você não para de pensar em mim? E o que o seu corpinho andou fazendo coladinho no dela, Bill Clinton? Você é um tolo, ela uma ordinária, e — haja desprendimento — eu não sou a Hillary! Eu te amo! Fico magoada. Não é humilhação que sinto, é tudo tão bobo e adolescente que me bate um desprezo. Depois acabo compreendendo a chatice inteira, e fico é muito triste. Parece que o avesso vai me sair pra fora cortado em pequenos pedaços de carne mutilada. Melodramático, você acha? Às vezes a gente perde mesmo a delicadeza, e a educação vai junto. Benza a Deus.

Meu amor, já te mostrei a caixa que mamãe me deixou antes de morrer? Tem um colo ali dentro. Não ri, vem cá e espia só. Tem coragem, tem vigor, tem alegria e encantamento por todas as coisas. Mamãe viveu pouco, mas me deixou uma bendita vontade de viver, um santo entusiasmo! Pois, nas horas de muita dor, eu cato uma pitada de cada coisa que tem ali, e num instante fico livre, quase forte, quase feliz. Agora, por exemplo, eu quase nem preciso de você.

Eu sei que, se aparecer na sua frente, seu coração dispara. Eu sinto, bobo, quando você me abraça, aquele bumbo rebatendo no peito. Pois o meu coração outro dia disparou com uma foto. Tava tirando você do porta-retratos da estante, com raiva, e você ali sorrindo pra mim com os dentes perfeitos. Não tirei mais, deixei onde estava, na prateleira da sala, sabe? Nem sei por que ligo tanto prum sujeito teimoso que procura fora aquilo que o afaste do que mais quer. Vou te internar. Se adiantasse… Mas não adianta. Sou eu sua cura, por isso você foge. E sou sua droga, por isso você volta. Eu sou sua droga, por isso você foge, mas sou sua única cura, por isso você volta sempre. Volta logo, vai, já te dei linha demais. Estou cansada dessa encrenca, quero paz. Quero uma surra de cotidiano. Quero ser professora primária numa vila do interior. Quero uma cama vazia pra me enroscar com você até o marasmo chegar.

Volta pra casa, eu deixo. Vem dar risada comigo, vem que a conversa é boa, os carinhos são ternos e eternos, e nós dois juntos, vida minha, somos um tapete voador.

Mas, pensando bem, você me faz doer. Volta não, amor. É que a distância, o tempo, sei lá, foi mostrando que eu sem você até que passo bem demais.