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Cafonice feminina
Revista Época - 2003
 

Ao teatro, tenho a convicção de que dou uma grande, uma completa experiência humana. Como ser social, porém, sou inegavelmente agressiva, despida de uma hipocrisia que tornaria a minha vida e a dos outros algo mais fácil. Faço amigos com dificuldade e raramente. Mesmo os sentimentos têm sido extremamente difíceis… Só participo das relações com base em profunda sinceridade e honestidade. Não quero dizer com isso que não seja às vezes hipócrita, como é costume. Apenas, no meu caso, essa hipocrisia não resiste muito e a minha reação a ela é violenta e desastrosa — quando a máscara me cansa, tiro-a e pratico absurdos.

Transcrevo isso de Fúria santa, uma biografia de Cacilda Becker, cuja leitura recomendo. É preciso ser muito fêmea pra sair das alturas e contar dificuldades de pessoa comum. Cacilda, como toda gente interessante, era uma mulher cheia de contradições. A gente lê e percebe que, apesar da riqueza de sua vida, do mito que foi e do mundo intenso que a cercou, ao final das contas, e é disso que quero falar, ela morreu de amor. Uma mulher forte, decidida, com um dom extraordinário e reconhecido por todos, morreu da falta de seu amor, que no caso chamava-se Walmor Chagas. Estou simplificando, é claro, Cacilda teve um aneurisma, era intensa e tensa e fumava muito. Mas foi-se com 48 anos apenas, e a gente sente, virando as páginas, que o fracasso de seu casamento nos últimos anos engoliu-lhe a vitalidade, deixando-a mortalmente solitária num mundo de admiradores. Déjà-vu? Pode ser. Outras divas se foram por motivos semelhantes — isso não é sequer um privilégio de grande dama, é coisa de mulher. Grande ou pequena, louca ou linear, mulher é, acima de tudo, romântica. E nisso até Cacilda era comum.

Cá entre nós, desconfio dessas moças de trinta e quarenta que, lindas, dizem agora ter atingido o ápice de não sei quê, e que estão muito bem sozinhas porque, donas de seus narizes, podem se dar totalmente ao trabalho e aos prazeres da vida. Mentira. Elas tomam remédios pra dormir e choram frustradas, sem entender por que, com tudo em cima, não conseguem um parceiro pra encher de beijos e dizer te amo. Prosaicos problemas femininos? Mas como doem e roubam a energia da gente. Deixam a cabeça sem foco, o mundo sem sentido, e uma vontade horrível de não ser. Se até a Cacilda… que levava dentro um furacão, criava coisas extraordinárias e tinha o mundo a seus pés, o que dizer das bundudas, peitudas e ocas? E das outras todas?

Certa vez, de férias com um amigo de longa data, ao olhar pra ele na praia, abriu-se uma janela dentro de mim cheia de histórias e coisas vividas juntos. Eu observava o modo dele andar, o sorriso, o ar blasé a esconder o pulsar das coisas… Naquele rolo de fotos passando, eu olhei, vi e senti um amor tão grande que transbordou pra fora do presente. Foi se enfiando pelo futuro, e nossa!… era pra sempre.

A vontade minha e a dele iam fazer com que todo o improvável desse certo. E deu num amor imenso. Tudo foi irresistivelmente romântico. Até que um dia, da noite pro dia, o amor estancou, se retraiu, ficou comum e ele partiu.

Devo ter perdido um pedaço do filme, e ninguém me explicou por que um punhado de areia encobriu a imensidão do mar. Passei a sair por aí fingindo que era feliz. Feito as Maysas, Marias e Cacildas, procurando por nós, eu me perdia de mim. Por dentro uma imensidão, por fora uma máscara com cara de nada. Só não morri porque um belo dia, do jeito que foi, ele voltou. Não sei como, mas voltou trazendo nossa história junto. Eu não quis explicação, não precisava. A união entre dois pontos era de novo uma linha reta. O céu resplandecia acima e o chão estava de volta embaixo de meus pés. Eu queria acordar porque ele havia voltado. Tudo era bom, benzadeus, porque o meu amor estava no único lugar possível — a meu lado.

Agora, olhando pra trás, já com os neurônios assentados em seus locais de origem, penso: ainda bem que eles voltam. (Os neurônios, claro.) E os homens também, vá lá. Ainda bem que voltam, quando voltam, para nos arrancar dessa cafonice gloriosamente feminina que é perder o sentido de tudo e se deixar morrer de amor.