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Cacilda também é comum
Revista Época - 2003
 

Ao teatro, tenho a convicção de que dou uma grande, uma completa experiência humana. Como ser social, porém, sou inegavelmente agressiva, despida de uma hipocrisia que tornaria a minha vida e a dos outros algo mais fácil. Faço amigos com dificuldade e raramente. Mesmo os sentimentos têm sido extremamente difíceis... Só participo das relações com base em profunda sinceridade e honestidade. Não quero dizer com isso que não seja às vezes hipócrita, como é costume. Apenas, no meu caso, essa hipocrisia não resiste muito e a minha reação a ela é violenta e desastrosa - quando a máscara me cansa, tiro-a e pratico absurdos.

Transcrevo isso do Fúria Santa, uma biografia recente de Cacilda Becker, cuja leitura recomendo batendo palmas. Ora, é preciso ser muito fêmea pra sair das alturas e contar dificuldades de pessoa comum. Cacilda, como toda gente interessante, era uma mulher assim, cheia de contradições. "A contradição é uma categoria lógica", dizia minha mãe quando eu tinha cinco anos de idade. Na época não compreendia - hoje concordo, claro! Pois a gente vai lendo o livro e percebe que apesar da riqueza de sua vida, do mito que foi e do mundo intenso que a cercou, ao final das contas, e é disso que quero falar, essa criatura especial morreu de amor. Uma mulher forte, decidida, com um dom extraordinário e reconhecido por todos, morreu da falta de seu amor que no caso chamava-se Walmor Chagas. É claro que estou simplificando, Cacilda teve um aneurisma, era intensa e tensa e fumava muito. Mas foi-se com 48 anos apenas, e a gente sente que o fracasso de seu casamento nos últimos anos, é o que vai engolindo-lhe a vitalidade e deixando-a mortalmente solitária num mundo repleto de admiradores. Déja vu pra alguém tão incomum? Pode ser. Outras divas se foram por motivos semelhantes. E esse não é sequer um privilégio de grande dama. Isso é coisa de mulher. Grande ou pequena, linear ou louca, mulher mesmo é assim, acima de tudo, romântica. E nisso até Cacilda era comum.

Cá entre nós, desconfio muito dessas moças de trinta e quarenta que, lindas, dizem agora sim ter atingido o ápice de não sei quê, e que estão muito bem sozinhas porque, donas de seus narizes, podem se dar totalmente ao trabalho e aos prazeres da vida. Tudo mentira. Elas tomam remédios pra dormir e choram frustradas sem entender porque, com tudo em cima, não conseguem um parceiro pra encher de beijos e dizer te amo. Prosaicos problemas femininos? Mas como doem e roubam a energia da gente. Deixam a cabeça sem foco, o mundo sem sentido, e uma vontade horrível de não ser. Se até a Cacilda... que levava um furacão por dentro, criava coisas extraordinárias e tinha o mundo a seus pés, o que dizer das bundudas, peitudas e ocas? Ou das outras todas?

Uma vez fui passar férias com um amigo de longa data. Estava olhando pra ele na praia, e abriu-se uma janela dentro de mim cheia de histórias e coisas vividas juntos. Eu observava o modo dele andar, o sorriso, o ar blasé pra esconder a pulsação das coisas... Naquele rolo de fotos passando eu olhei, vi e senti um amor tão grande que transbordou pra fora do presente. Foi se enfiando pelo meu futuro e nossa... agora era pra sempre!

A vontade minha e dele ia fazer e fez com que todo o improvável desse certo. Tudo era irresistivelmente romântico quando da noite pro dia, um dia... o amor estancou, se retraiu, ficou comum e ele partiu...

Eu devo ter perdido um pedaço do filme e ninguém me explicou porque um punhado de areia encobriu a imensidão do mar. Passei então a sair por aí fingindo que era feliz. Feito as Maysas, Marias e Cacilda, eu procurava por nós e me perdia de mim. Por dentro uma imensidão pra dar, por fora uma máscara com cara de nada. Só não morri porque um belo dia do jeito que foi, ele voltou. Não sei como, mas voltou trazendo nossa estória junto. Eu não quis explicação, não precisava. A união entre dois pontos era de novo uma linha reta. O céu resplandecia acima e o chão estava de volta embaixo dos meus pés. Eu queria acordar porque ele tinha voltado. Tudo era bom benzadeus porque o meu amor estava no único lugar possível - ao meu lado.

Agora, olhando pra trás, já com os neurônios assentados em seus locais de origem, penso: Ainda bem que eles voltam. Os neurônios, claro. E os homens. Ainda bem que voltam, quando voltam, para nos arrancar dessa cafonice gloriosamente feminina que é perder o sentido de tudo e se deixar morrer... De amor.

Não é Cacilda?