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O Anjo Gordo
Revista Época - 2004
 

Outro dia falei aqui de dois erros clínicos que levaram a mortes na minha família. Foi uma grita geral de gente a favor com casos semelhantes pra contar. E houve tb os que não gostaram - médicos de modo geral.

O fato é que em toda profissão há os vocacionados e os que não levam jeito pra coisa. Infelizmente, na medicina, quando o sujeito não é do ramo, a falta de talento incide - mais vezes do que seria desejável - na morte e noutras irreversibilidades tão desagradáveis quanto.

Há um ditado na Índia afirmando que toda criatura deve encarnar duas vezes como médico. A primeira, quando vier de homem pela primeira vez, para q assim, na sua inexperiência, possa praticar toda sorte de irresponsabilidades brincando entre a vida e a morte. E a segunda, na última encarnação, para que do alto de suas virtudes, possa salvar, curar, e dignificar a vida a seu redor.

Se for com dizem, deve estar havendo algum desequilíbrio lá no Comando e tem gente demais encarnando no Brasil pela primeira vez. Mas como os desequilíbrios tendem a se acertar, e que o mês é de otimismo, vou contar a história de uma mulher da rua que não era médica mas sabia curar, e que sendo pobre, não pedia nada em troca do bem que fazia, porque tinha a alma rica e o coração bom.

Eu estava há cinco longos meses no cinza de um inverno europeu, qdo bateu o primeiro raio de sol no pátio da Rue du Cherche Midi onde eu morava. Soube naquele instante que precisava de luz mais do que tudo. Então, antes que se encerrasse para mim toda possibilidade de alegria, parti rumo ao mediterrâneo.

Grécia, encantos, cor, esplendor!

Acontece que a pouca idade e a farta inconseqüência me deixaram entupir de sol a tal ponto, que minha pele fez queimaduras de 2° grau. Com febre alta e o corpo dolorido, andava uma tarde pelas ruas com o namorado, quando uma turca grandona me pegou pelo braço e mandou que a seguíssemos. Era de tal modo autoritária a senhora, que sem hesitar, olhamos um pro outro, e deixamos que ela me arrastasse enqto falava incessantemente num tom exaltado. Tentamos alguns idiomas pra facilitar a comunicação mas o negócio da mulher era turco mesmo, e ela não estava ali pra ser compreendida mas para ser seguida.

Chegamos à casa dela. Uma casa simples. A gorda nos mostrou que tinha filhos e marido, que era portanto uma mulher respeitável, e que eu não enrolasse e fosse tirando a roupa pq ela não tinha tempo a perder. Ela era muito brava, eu tirei. Da cozinha a mulher trouxe uma mistura de iogurte de cabra com sei lá o que, e me besuntou o corpo todo, até as orelhas, com aquela meleca. Depois me enrolou num pano, sentou-nos à mesa e serviu-nos uma sopa. Em seguida fomos levados ao quarto do casal onde deveríamos dormir - ela e o marido passariam a noite no sofá da sala.

- Não faça isso, de modo algum, podemos dormir em qq canto...

A turca bateu a porta e fechou-nos ali. Dormimos.

Quando acordei de manhã sem febre e bem disposta, olhei minha pele, e incrédula, percebi que a textura era outra - não havia uma bolha e tudo parecia liso e renovado. Eu estava totalmente curada. Encantada, fui até a turca que de braços abertos ria alto e contente, dei-lhe um aconchego de filha, agradecemos de coração, e sem poder fazer mais, fomos embora. E fomos pro mundo. Nunca mais eu vi aquele anjo gordo.

Então quando penso na desestrutura dos hospitais da nossa terra e nos desalmados que praticam uma medicina burocrática e desleixada, lembro tb que por toda parte há gente boa. E fico imaginando que até aqui nesse país de primeiras encarnações, com sorte, a gente há de esbarrar num doutor encarnado em anjo na hora do apuro.

Boa sorte!