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Anencéfalos
Revista Época - 2005
 

Quando minha filha nasceu a vida começou a fazer sentido. Eu estava integrada com a existência tendo enfim cumprido a única missão fundamental para uma fêmea nesse mundo: perpetuar sua espécie. Que não gritem as feministas pq esta não é uma verdade contestável - ela nem foi pensada, simplesmente despencou sobre mim, absoluta, no primeiro instante do pós-parto. Eu era igual a vaca, a gaivota, a girafa e isto me fazia sentir muito feliz. Agora eu tb fazia parte do lado produtivo de um mistério grandioso e harmônico e como prêmio ainda havia sido contemplada com o bebê mais perfeito do universo. Tudo parecia extraordinário pq milagres são extraordinários; até mesmo este, comum, da gente fazer bebês.

Infelizmente, nem sempre o destino é tão gentil.

Há neste momento inúmeras ações correndo na Justiça para autorizar a antecipação terapêutica do parto em fetos anômalos, pq no Brasil só se permite o aborto em caso de risco à vida da mãe ou estupro. Em qq outra situação, a mulher que interrompe uma gravidez, estará sujeita - além da perda do filho - à pena de três anos pelo crime praticado. Acontece que a lei que delibera sobre o assunto foi instituída em 1940, quando ainda não havia os exames que hoje há, para detectar anomalias intra-uterinas.

Agora se pode saber, nos primeiros três meses, que uma criança vai nascer, anencéfala, por exemplo, ou seja, de crânio aberto com nada dentro. Não me parece decente que se condene uma mãe a meses de sofrimento, para depois parir um monte de células e tecidos que terão apenas alguns minutos de vida biológica - pq é isso que acontece com 100% dessas criaturas, e não há qq iniciativa médica capaz de reverter a deformidade na sobrevida. Mesmo assim, a Justiça obriga a mulher a passar por todo o processo dessa gravidez, do apego ao feto aos estragos em sua auto-estima, para gerar um vegetal que a lei reconhece como vida humana. Ora, o estado vegetativo não é suficiente pra se chamar uma coisa de gente nem mesmo para a própria Justiça que, neste país, considera morto o indivíduo cujo cérebro parou de funcionar. Então, se não existe cérebro algum, que indivíduo há ali?

A verdade é que a Justiça tende a se meter demais em assuntos que não lhe dizem respeito. Há decisões que só o indivíduo pode tomar pq só ele sabe da singularidade de sua dor, e se alguma lei não compreende isso, se não evoluiu junto com a medicina moderna, sendo velha e ruim, ela deve ser mudada. O caso dos bebês anencefálicos que está agora em julgamento no STF, entra, a meu ver, nessa categoria. A lei deveria assegurar o direito de se levar uma gestação até o fim, mas tb, a de não fazê-lo caso esta for a vontade dos pais. Até porque, qdo há dinheiro sobrando, vai-se a clínica da esquina, tira-se a coisa escondidinho e fica tudo por isso mesmo - só quem é obrigado a parir anomalias é a mãe pobre e sem recursos.

Os conservadores afirmam que aquele corpo poderá ter seus órgãos transplantados ajudando a salvar a vida de outros bebês, mas novamente aqui, a opção pela atitude magnânima deve ser da mãe, caso ela queira e consiga agir assim. A sociedade não pode ser generosa às custas do sacrifício imposto a uma pessoa.

E há ainda a questão da igreja.

Nossa constituição fala em legalidade, liberdade, e autonomia da vontade, mas os religiosos, dogmáticos como de hábito, pressionam lançando mão de preceitos diversos como aquele do direito à vida (entre outros sofismas). Eu pergunto; que vida?

Além disso, se homens de bem e de fé abriram uma brechinha pra se extrair um feto - perfeito - quando este é fruto de estupro, qual a justificativa para tanta inflexibilidade no caso de algo que não pode, honestamente, ser considerado como ser humano?

Perdoem-me se sou ofensiva, mas Deus deve ter vontade de vomitar com certos desvarios praticados em seu Santo nome.