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Amor da minha vida
Revista Época - 2004
 

O amor da minha vida eu encontrei, tem nome, é de carne e osso, e me ama também. Agora falta encontrar alguém com quem possa me relacionar.

É que o homem da minha vida não cabe em mim e eu não caibo nele. Não basta que a gente se queira há muitos anos. Não bastam nossos namoros longos, os rompimentos e a teimosia de desejar mais daquilo que não há de ser. Não presta que ele me visite pra acabar com as saudades e fuja correndo de pernas bambas. Não importa que eu esqueça meu nome depois, nem que me perca num oco, ou que os sentimentos corram de ambos os lados, intensos e desarvorados. Não basta que haja amor para se viver um amor. Eu e ele somos as cruzadas da Idade Média, o Osama e o Tio Sam, o apartheid, o falcão e o lobo, o Feitiço de Áquila. Seus mistérios me perturbam e minha clareza o ofusca. Tenho fascínio pelo Plutão que ele habita, e ele vive intrigado por minha Vênus, mas quando eu falo vem, ele entende vai, enquanto ele avista o mar, eu olho pra montanha. Quando um se sente em paz, o outro quer a guerra. É preciso me traduzir a cada centímetro do caminho enquanto ele explica que eu também não entendi nada. Discordamos sobre o tempo, o tamanho das ondas, a cor da cadeira. O desacerto é de lascar, e não há cama que resista a tantas reconciliações — um dia a cama cai.

Esta semana assisti à Ópera do malandro, em cartaz no Rio de Janeiro. Se o Chico Buarque nunca mais tivesse feito outra coisa na vida, ainda assim teria de ser imortalizado pelas alturas em que transita sua poesia nessa obra. Como ando às voltas com assuntos de amor, prestei atenção na cafetina Vitória, que, do alto de sua experiência, ensinava:

Ai, amor jamais foi um sonho, o amor, eu bem sei, já provei, é um
veneno medonho. É por isso que se há de entender que o amor
não é ócio, e compreender que o amor não é um vício, o amor é
sacrifício, o amor é sacerdócio.


Mais adiante Terezinha, a heroína quase ingênua, sofre:

Oh pedaço de mim, oh metade arrancada de mim, leva o vulto
teu, que a saudade é o revés de um parto, a saudade é arrumar
o quarto do filho que já morreu. [...] Leva o que há de ti, que a
saudade dói latejada, é assim como uma fisgada no membro
que já perdi.


Naquela noite voltei pra casa decidida — não quero mais o amor da minha vida ocupando o lugar de amor da minha vida. Venho, portanto, pedir a ele, publicamente, que libere a vaga. É com você mesmo que estou falando, você aí, que se instalou feito um posseiro dentro do meu coração, faça o favor de desinstalar-se. Xô! Há de haver um homem bom, me esperando em alguma esquina desse mundo. Um homem que aprecie o meu carinho, goste do meu jeito, fale a minha língua e queira cuidar de mim. As qualidades podem até variar, mas aos interessados, se houver, vou avisando: existem defeitos que considero indispensáveis.

Meu amor tem de ter uns certos ciúmes, e reclamar quando eu precisar viajar pra longe. Pode se meter com minha roupa, com corte do cabelo, e achar que sou distraída e não sei dirigir. Quando ficar surpreso de eu ter chegado até aqui sem ele, afirmarei, sem ironia, que foi mesmo por milagre. Esse homem deve querer nosso lar impecável, com flores no jarro, e é imperativo que faça tromba quando não estiver assim. Ele irá me buscar no trabalho e levará direto pra casa, nada de madrugadas na rua! Desejo, enfim, que meu amor me reprima um pouco, e que me tolha as liberdades — esse voo alucinante e sem rumo anda me dando um cansaço danado.