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Eu acredito em Deus
Revista Época - 2003
 

Eu acredito em Deus.

Meus pais eram ateus convictos, do tipo que acha ingênuo quem crê no que a lógica não explica. Mesmo assim, aos cinco anos, por praticidade, me enfiaram numa escola de freiras, onde vivi meus primeiros conflitos existenciais. Falava-se em pecado o tempo todo, e eu, então, passei a andar obcecada pelo chão tentando não matar formigas, já que matar era pecado e eu não podia imaginar nada tão mortífero quanto meu próprio pé, ou tão matável quanto aquelas ínfimas criaturas. Além disso, o mundo ia fazer primeira comunhão, e lá em casa ninguém falava no assunto. Quando perguntei a minha mãe se Deus existia, ela disse, “é igual Papai Noel, existe pra quem acredita nele”, e ela sabia que eu já não acreditava. Por fim, não deu certo a experiência com as freiras, me trocaram de escola e por uns bons anos fiquei livre daquelas questões.

Aí minha mãe morreu, meu pai pirou, e eu fui parar num pensionato pra filhos de missionários americanos e luteranos. Rezava-se pra acordar, pra dormir, pra comer e pra louvar ao final de cada dia com cânticos espirituais. As coisas eram certas ou muito erradas e não havia meio-termo. O bom senso não servia pra nada e o que valia era a palavra de Deus segundo a interpretação que aquela gente fazia da bíblia. Eu vinha de uma casa onde as pessoas filosofavam a vida e onde o pensamento era a maior diversão, então demorou um pouco pra conseguir aceitar o maniqueísmo que ditava as regras na nova morada. Mas o mar não estava pra peixe, e aquela gente religiosa tinha o coração puro e bom. Eles tinham amor pra dar, e eu, uma cratera de carências pra preencher. Nessa união justa, Deus entrou na minha vida pela primeira vez. Entrou pela vala do amor e me encheu de conforto.

Assim, li a bíblia toda, o Velho e o Novo, e de resto sintonizei no divino e deixei rolar. A primeira vez que me aconteceu uma experiência transcendental eu tinha 14 anos. Estava deitada no chão, à toa, e sem mais nem menos meu espírito se descolou do corpo. Não, eu não havia fumado nada, e também não estava em estado elevado de consciência rezando ou coisa assim. Estava ali de bobeira mesmo quando uma sensação de sublime leveza me arrebatou pra fora do corpo deitado, que meu outro ser, suspenso, passou a observar. Eu ia subindo acompanhada por entidades cuja forma não via mas sentia, e o chão, o campo, o quarteirão, minha cidade iam se mostrando cada vez mais distantes e sem cor. Tudo agora era preto e branco. O mundo, com meu corpo ali, era cinza e sem graça, mas, dentro do meu ser etéreo e cada vez mais distante, havia uma festa de soberana harmonia. Eu era dona de uma paz magnífica! Não sei dizer quanto tempo meu espírito ficou em êxtase, pode ter durado trinta minutos ou uma hora, mas guardo até hoje a sensação e, acho que por causa dela, não tenho medo da morte. Naquela época fiquei uns três anos envolvida com coisas de Deus, e aí, não sei bem por que, larguei mão por um tempo, mas não totalmente. Viajei muito, e em cada cultura buscava os locais e templos sagrados. Na maioria, independente da corrente religiosa, senti a presença de Deus. Às vezes, quando era muito forte, passava horas tentando sintonizar a forma de louvor local, para então me abastecer de luz. Concluí que Ele não liga se a gente quer chamá-lo de Buda, Iemanjá, Maomé ou Jesus. Ele não liga nem se a gente deixr de chamar por um tempo, Ele é dono do infinito e não tem pressa.

Há quinze anos voltei a ter uma prática religiosa diária e pessoal, hoje devotada à face feminina de Deus, sendo Nossa Senhora o ponto alto de meu altar. De lá pra cá os fenômenos foram muitos. Não vou descrevê-los porque você vai achar que ensandeci, mas o fato é que na minha vida certas coisas acontecem. Se não ocorrem com você, amigo, não quer dizer que eu tenha um botão a menos, apenas que me abri para uma experiência a mais.

Eu acredito que o Senna, nosso ídolo, viu mesmo Deus naquela curva em Mônaco. Ele estava num estado especial de concentração e aconteceu. Não tinha por que se expor ao ridículo, dando a cara a bater para um bando de céticos, se não houvesse de fato visto o que viu. Você não viu, mas ele viu, oras. Copérnico afirmou que a terra era redonda e girava em torno do Sol. Foi chamado de maluco, hoje sabemos que não era. Teresa D’Ávila em êxtase levitava contra a própria vontade, tamanha a força de seu louvor, e na Índia, onde não se questiona o sagrado, essas coisas são corriqueiras, elas acontecem. Acontecem na pausa. Acontecem na hora do silêncio, entre uma respiração e outra. Acontecem simplesmente. Talvez estejam para acontecer a você. Shhhhh…