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À beira do abismo me cresceram asas
Revista Daslu – dezembro 2012
 

Ando às voltas com a escrita de uma nova peça. Sobre duas velhinhas num asilo; alegre não é? Mas também não é de todo triste, tem humor, ora, como não? A vida é uma grande ironia, duas senhoras com tempo de percurso conhecem bem os truques dessa aventura. Em À beira do abismo me cresceram asas, Valdina leva um dia a dia otimista e sem saudosismos. Terezinha é de temperamento mais carrancudo. Em comum, têm a praticidade dos que aprenderam a simplificar a vida já que não há tempo para complicá-la. Há também entre elas, mais do que tudo, a indispensável amizade que encanta e justifica o momento do grande final. Pra você, em primeira mão aqui, pitadas dos diálogos que compõe esta história:
- O que vc vê quando olha pra mim? Uma velha rabugenta e reclamona? Eu não sou o que você está olhando. Eu sou aquilo que está dentro do q você está olhando. E o que eu converso com você vem de lá, eu sou o lado avesso da velha que vc vê.
- A gente tem que abandonar o passado todos os dias, ou aceitá-lo. Quem não consegue, vira artista como eu, que é pra transformar, e o resto vira chato mesmo, e reclama reclama reclama.
- Sempre tive o espírito certo pra ser artista, era livre por dentro.
- Nós é que somos ansiosos, amarrados nessa carne velha, uma dor aqui, outra ali. Um monte de coisa por fazer e cadê a força? E o tempo, esse traiçoeiro? Quando a gente quer que passe ele se arrasta, quando precisa dele já não tem. O jovem não, tá tranquilo, vivendo o dia de hoje, se lixando pro amanhã.... isso é que é espiritualidade.
- Problema do jovem é juventude em excesso, mas como é sabido, todo mundo se cura disso.
- Filtro pra que? Voltei pra infância, falo o que passa na cabeça.
- Tem o povo do chinelão, que senta na frente da tv pra assistir a vida dos outros, e acha que a alegria é uma grande injustiça mal distribuída.
- Quando chegaram diziam que eram irmãs. Mas uma é preta e a outra branca, uma gordona, dentuça, a outra magra, não se parecem nadinha, e viviam de meu amorzinho pra cá, comida na boca uma da outra. Logo todo mundo entendeu que aquilo não era amor de irmã.
- Se deixasse o mundo por conta dos homens eles estavam até hoje medindo tacapes. Homem gosta de uma comparação. Se a gente diz prum homem que ele é inteligente, ele fica contente, mas se falar que ele é tão inteligente quanto o Churchill, aí... ele exulta!
- Eles também fingem Valdina. Fingem intensidade que é pra ver se a gente se anima.
- A velhice não é pra covardes’, Edith Piaf. Gosta dela?
- Todo domingo nós saímos para caminhar. Fazemos companhia uma à outra. Reparou como estou bonita? Roupa de domingo, eu mesma cortei, costurei. Há pouco tempo as mãos ainda obedeciam. Sou magrinha, como pouco, ainda cabe. Diga se não estou uma uva.

- Uma dor partilhada é metade da tristeza, mas a felicidade, quando a gente divide, parece que dobra.
- Virei um peso. Triste acordar e não ter nada para fazer...Se eu morrer hoje, amanhã estão pintando as paredes do quarto para a chegada de outro ancião.
- Olha, é o seguinte, se Deus existe e ele me apontou a maçã lá no paraíso – sabendo quem eu sou - é porque queria que eu transgredisse. Então tô aqui seguindo meu destino: pecando!
- Morrer é mesmo uma coisa muito besta. O sujeito tá cheio de planos, tentando fazer o melhor possível, atravessa uma rua e é atropelado. Ou morre de doença que faz ainda menos sentido.
- ‘Felicidade a gente acha é em horinhas de descuido’, disse o Guimarães Rosa, q não se sabe se foi feliz, mas q deu alegria pra um bocado de gente. É ou não é?
- Eu chamo meus mortos pelos antigos apelidos, falo deles da maneira como sempre fiz. Não mudei o tom, não uso solenidade, nem tristeza.
- Cavo até dar água. Sempre fui inquieta, qdo encontrava uma porta fechada abria no chute. Trato a falta de memória assim, com insistência. Eu só não me dou muita conta é do passar dos dias, das datas, da hora. Que dia é hoje?
- É a experiência. Ela dá o direito de ser do jeito que se quer, falar o que dá na telha. É a hora da verdade, da liberdade sem frescurinhas. Quer melhor?

- Vamos bagunçar o coreto lá em cima. Você acha q no céu eles usam léguas ou milhas?
- Acho que no céu usam quilômetros. É tudo pra facilitar, pra brasileiro convertem em metro.
- Estou no ponto e ainda tem tanto por fazer, aprender um instrumento, saber cantar bonito, dar a volta ao mundo, cozinhar pratos exóticos,...puxa, que maravilha o futuro! Mil anos deve dar pro começo.