Na zona do agrião
oglobo.globo.com/cultura – jun/14

O futebol é uma das oportunidades de os homens feios, os baixos e os de pernas tortas tornarem-se deuses

Querida Maitê Proença, eu, que sempre te sonho, tenho te visto agora — com a excitação benigna de sempre, o coração na ponta dos dedos — no vídeo do "Extra Ordinários", a melhor mesa redonda de futebol que as televisões colocaram no ar para discutir esta Copa.

Quem te escalou no time desses sabichões da bola entende da essência do jogo. Futebol é só pretexto, o antepasto e tira-gosto para se discutir o resto do mundo. Desencana, meu amor, se o 4-2-3-1 te é uma impossibilidade intelectual. Ninguém precisa saber a lei do impedimento ou chorar pitangas porque o futebol moderno acabou com os cérebros do meio de campo. A vida, e é disto que se está falando no programa, vai muito além.

Quando a bola rola, e você, escritora sensível, vai me desculpar a aliteração vulgar que me sai da caixola — quando a bola vem na nossa direção, assim como foi na direção do Suárez no primeiro gol do Uruguai contra a Inglaterra, a gente tem que fazer como ele. Dar um tempo diferente na passada, um falso passo que desloca toda a zaga inimiga e te permite cabecear de curva, meter na transversal — "de ladinho", como diria o seu companheiro "extraordinário", o último romântico Xico Sá.

Futebol é só a melhor maneira de começar um papo sobre o que interessa, e não à toa vocês têm falado muito de sexo — se é que eu já não estava dormindo, sonhando, quando alguém aí disse que gostaria de conhecer o Pirlo, o mais velho jogador de linha da Itália. Não sei se foi você, doce Maitê. Eu talvez tenha misturado tudo, me lembrando do teu ensaio para a "Playboy" num vilarejo italiano. Não sei se foste tu a dizer, mas podê-lo-ia, se me permites misturar todos os tratamentos e, tu ou você, abusar da nossa intimidade com a língua.

Uma vez, com a sinceridade bem-humorada que caracteriza seus textos, você escreveu sobre os inconvenientes do "69" entre as práticas sexuais. A relação custo-benefício não te empolgava, pois haveria uma extenuante pirotecnia acrobática com resultados discutíveis para a gratificação proporcionada. Pois, Maitê, o Pirlo é o anti-69. Zero de exibicionismo. Ele faz o que precisa ser feito. Enfia a bola onde ela deve cair e com aquela simplicidade gostosa das boas coisas da vida. Tudo na base do papai-e-mamãe clássico, com muito beijo na boca. Ao final, oferece mais. Corre para o abraço, com o indispensável café com leite que na manhã seguinte abençoa os amantes pacificados.

Você sabe disso tudo melhor do que eu, melhor do que toda a bancada de seus colegas. Quando não sabe, quando se faz de songamonga admirativa ante o enciclopedismo futebolístico deles — e pergunta se o baixinho francês Valbuena pode dar conta do recado com a mesma eficiência que o enorme Balotelli — aí então você fica mais irresistível ainda.

E fica irresistível porque visivelmente você sabe a resposta. Está apenas dando uma chance de os rapazes mostrarem sabedoria. O futebol é uma das oportunidades de os homens feios, os baixos e os de pernas tortas tornarem-se deuses. No sexo é a mesma coisa. Quantos desparagonados pela sorte dos grandes atributos físicos dos músculos e dos olhos azuis se superaram na hora agá, na hora do vamuvê, e você os saudou aos gritos e sussurros de "meu batuta campeão"?

Machos adoram impressionar meninas exibindo a cultura peladeira que recolheram pela vida. Deixe o insopitável Eduardo "Peninha" Bueno contar, e não há na TV ninguém contando histórias melhor do que ele, que o Argentina e Uruguai de 1930 foi jogado em cada tempo com a bola de cada país. São meninos. Viram "Papai sabe tudo" e acreditaram. Não temos muitos brinquedos. Somos capazes de passar a noite discutindo se a deixada do Pogba para o Benzema, no quarto gol da França, foi igual a do Pelé para o Carlos Alberto em 70 ou a do Romário para o Bebeto em 94. Não se impressione, Maitê. São nossos truques. Como diria, parecido, aquela música do Leoni, "Garotos": é apenas um esquema tático feito para driblar a emoção.

Enfim, querida, vocês estão fazendo o mais original programa desta temporada, pois tiraram a conversa sobre futebol do tatibitate adolescente com que o assunto vem sendo tratado em outros canais. É preciso atrair a audiência feminina, estou de acordo, e eu li uma pesquisa dizendo que há mais mulheres do que homens assistindo às partidas. Mas não basta escalar repórteres pseudamente malandrinhas, cariocas ixpertas que chiam nos plurais e balançam o corpo como se estivessem conversando, eternas adolescentes, com o vendedor de mate na praia. O ambiente do futebol é como a gafieira antiga. Exige respeito.

O "Extra Ordinários", capaz de explicar a lentidão da seleção japonesa a partir da lentidão dos filmes do Kurosawa, é um gol de placa (veja o verbete "Pelé contra o Fluminense em 1961"). Deveria ser mantido na grade do SporTV mesmo depois desta Copa incrível, de gols quase tão bonitos quanto você — se é que você me permite o elogio de boleiro desajeitado, essa maneira meio Rooney, meio Hulk, de chegar assim, tão ogro, tão intempestivamente goleador, na zona do agrião.

A propósito, Maitê, você sabe onde fica a zona do agrião? E onde a coruja dorme, você dormiria?

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