A VIDA QUE NOS INVENTA
Prefácio de José Eduardo Agualusa
 

A vida a todos inventa, mas inventa a uns melhor do que a outros. Maitê Proença, há que reconhecer, foi muito bem inventada. Se existem vidas que desmoralizam a ficção, que a tornam ociosa e ridiculamente frágil – a de Maitê parece-me ser uma delas.

A matéria de que se faz este livro é pura vida: a vida na sua insensatez arrebatadora e em todo o fulgor do seu mistério – risos, onde se esperava o choro, amor onde seria suposto prosperar o ódio, ódio onde devia estar o amor.

Um "relato sobre contradições" no qual Maitê expõe com impressionante coragem a tragédia que lhe destruiu a infância, a sua perplexidade e o seu dividido coração de menina. É com a mesma coragem, com a mesma sinceridade que reflecte sobre a condição de actriz e de celebridade, sobre sexo, drogas e maturidade.

"Uma Vida Inventada" desafia todas as classificações: podemos considera-lo um registro autobiográfico? Sim, sem dúvida, mas também uma recolha de crônicas ou de apontamentos, diário de viagens, e ainda um quase romance, que aqui e ali interrompe o fluxo da memória, e preenche os espaços vazios – aquilo que não poderia ser dito de outro forma – num puzzle perturbador, e que só ao final se resolve. Ou então um romance inteiro, sólido, pois num romance tudo cabe e tudo é possível, inclusive a realidade.

"Há nos meus interiores um entusiasmo indelével que me move" – escreve Maitê. É com este entusiasmo que ela arrasta os leitores, desde a primeira frase, dando-nos a ver a alma que se esconde por detrás do rosto que o Brasil inteiro conhece e admira: "Um mês depois de sumir o pai voltou, num susto, como havia partido. O abatimento em seu corpo era indisfarsável. Não que tentasse... Emagrecera de dar aflição e fumava mais do que antes com o olhar perdido nos fundos do pensamento. Que idéias marejavam aqueles olhos de louco?"

Maitê Proença conduz-nos pelos primeiros anos da sua vida, ou da vida de alguém como ela, educada numa escola americana, em Campinas – a única menina brasileira! – até à descoberta do sexo, e ao mesmo tempo do Brasil; do amor e da maternidade. Este é o jogo da verdade. Nada se ilude, nada se esconde. Maitê revela-nos a gravidez adolescente, que acontece enquanto desce o Velho Chico – e nem se concebe a mais bela metáfora para uma iniciação brasileira ou para o prazer descoberto aos 25 anos. E, finalmente, o encontro com a arte de representar: "Não sei o que faço aqui. Com quem estou falando? Por que essas revelações? Isso de passar a vida interpretando textos de outras criaturas vai abafando a própria voz". Ou ainda, como acrescenta adiante: “Às vezes não sei bem se aquilo que penso é meu próprio pensamento e se o que desejo é meu querer ou de outro.”

Há ainda as pequenas anedotas com outros actores, figuras públicas, companheiros e amigos, que sevem para melhor ilustrar um pensamento. Tudo isto servido por uma linguagem elegante, um constante bom humor e auto-ironia, uma inteligência capaz de enxergar e reconhecer os próprios erros.

Maitê revela-se com este livro um personagem que nenhum escritor desdenharia. Infelizmente, (para eles) ela driblou-os a todos, com a mesma energia com que driblou o destino, e veio em pessoa contar-nos a sua história. Uma grande história. A maioria dos escritores (e em particular dos escritores portugueses) tem de ir procurar noutras existências as vidas com que alimentar as suas personagens. A Maitê basta-lhe a própria e as das pessoas que lhe estão, ou estiveram, mais próximas.

Obrigado Maitê, pela coragem, e pelo talento.

José Eduardo Agualusa

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