Uma longa jornada de volta ao passado
Crítica de O estado de S. Paulo, em 08/04/10, por Jefferson Del Rios
 

As Meninas, de Maitê Proença e Luiz Carlos Góes, une realidade e sonho

Maitê Proença ao pensar As Meninas, que escreveria a quatro mãos com Luiz Carlos Góes, partiu de uma dura experiência pessoal para transfigurá-la em algo que está em um verso de Todo Sentimento, de Chico Buarque. Ou seja, escreveu dentro de um "tempo que refaz o que desfez". No enredo centrado no velório de uma mulher assassinada, a filha e sua melhor amiga observam as nem sempre compreensíveis relações dos adultos.

Não houve uma morte natural e o clima deveria ser o de tragédia. Maitê Proença não quis, não pode, ou ambas as coisas, seguir este caminho. A alternativa, junto com Góes, é mais tranquila. Quase sempre se chega a bons resultados quando o cotidiano de uma família, suas várias camadas afetivas submersas e máscaras sociais, são vistas pelo olhar direto das crianças. Elas podem ter reações inesperadas de perplexidade e sublimação diante do primeiro contato com o irremediável.

Peça e encenação seguem a vertente entre a fantasia e a realidade distanciando-se do passionalismo dos trajes negros, choro e desfalecimentos. Os pequenos olham o luto com perplexidade desarmada igual à dos irlandeses rudes do teatro de John Synge e Brendan Behan em que dor, música e bebedeira se confundem. É neste espaço entre o sonho e o concreto que a literatura faz sua intervenção. O resto é psicanálise ou religião. Toda abertura do romance Trindade, de Leon Uris, mostra o garoto de 11 anos, novamente na Irlanda, que ouve um grito e alguém lhe sussurra que o vovô morrera; e ele observa "com a maior clareza o primeiro grande choque da minha vida. As crianças estavam boquiabertas de susto".

Onírico. As meninas de agora participam do cerimonial com o mesmo espanto temeroso, mas, ao mesmo tempo, mergulham em um clima onírico que torna possível a presença, com naturalidade, da falecida que expõe suas razões e sua verdade. É um assim é se lhe parece porque os vivos têm opiniões distintas a respeito dela e do assassino. Nada é muito claro a não ser a imaginação das já adolescentes que, à sua maneira e alcance, meditam sobre os chamados mistérios da existência.

Há um tom de graça e delicadeza indicadores de uma opção branda para um fato grave. Embora o texto em dupla não ajude a distinguir os estilos, é possível perceber sinais da vivência interiorana de Maitê Proença. Certos hábitos e costumes afloram em agrupamentos humanos ligados a ritos e/ou tradições que se diluem nos grandes centros, o que inclui as vigílias fúnebres em casa. Dentro desta suspensão poética do real, faz sentido a inclusão de músicas alusivas ao tema, como Fita Amarela, de Noel Rosa. O espetáculo de Amir Haddad mostra que na memória do diretor do grupo carioca Tá na Rua ressoa algo do seu passado juvenil em Rancharia, com festas e pequenos dramas de família.

No entanto, a leveza dada à obra e sua encenação (sobretudo a cena final) incorre na idealização, ou fuga, do luto e dos traumas que um crime provocaria. Um traço qualquer a mais de tensão não estaria deslocado. A peça Fica Comigo Esta Noite, de Flávio de Souza, com assunto parecido, demonstra que esta dualidade é possível.

O trunfo do espetáculo é o talento e simpatia das atrizes, todas adequadas aos papéis, tirando deles, cada uma, seu instante de brilho maior. Os contornos de três deles facilitam as divertidas criações de Clarice Derzié Luz (várias pessoas), Sara Antunes (filha) e Patrícia Pinho (a garota amiga) e o romantismo sensual de Vanessa Gerbelli (a mãe). Se a caricata peruca loira de Analu Prestes desaparecer será um favor à atriz e à encenação.

Como ocorre na dramaturgia de Naum Alves de Souza, outro autor afetuoso com a transição infância-adolescência, os papéis de Meninas permitem o jogo de idades. O tempo se embaralha na brincadeira de avó ou princesa. Este universo pode ser terrível (os filmes de Bergman), mas aqui predomina algo róseo, acetinado e leve graças à cenografia de Cristina Novaes, figurinos de Beth Filipecki e iluminação de Paulo César Medeiros. Este tom de magia abdica de enfrentar o lado escuro dos fatos. A opção conquista porque Góes tem experiência com humor e Maitê Proença conseguiu ser intensa e serena nesta difícil jornada passado adentro.

Serviço

Cultura Artística. Av. Pres. Jusc. Kubitschek, 1.830, 3078-7427. 6ª, 21h30; sáb., 21 h; dom., 18 h. R$ 60/70. Até 2/5

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