Todas as meninas
O Globo, 07/07/2009
 

Crítica do GLOBO aplaude peça cuja estreia foi ofuscada pela polêmica.

A polêmica em torno da estreia de "As meninas", peça de Maitê Proença e Luiz Carlos Góes, ameaçou empanar a alegria que é pôr de pé um espetáculo de teatro. Isso porque outras "Meninas", essas as do memorável romance de Lygia Fagundes Telles, também ganharão o palco este ano, numa adaptação de Maria Adelaide Amaral, e Lygia não gostou da coincidência. "As meninas" de Maitê, portanto, são as primeiras a vir a público - e vieram com tudo, segundo Barbara Heliodora (a seguir). Também nesta página, Maitê explica que tentou mudar o nome da peça, por deferência à grande escritora, mas que a burocracia a impediu. O que dizer? Quanto mais meninas, melhor.


 

Por Barbara Heliodora - O Globo, 07/07/2009
 

As meninas: Brilho dos diálogos se destaca em peça atraente e original

Está em cartaz no Teatro Laura Alvim o charmoso e agridoce texto de Maitê Proença e Luiz Carlos Góes "As meninas". Passado em um original velório, do qual a falecida participa intensamente, o texto é uma descoberta de como diferentes idades e diferentes posições na constituição de um pequeno grupo social reagem e se expressam diante de uma morte, além de tudo violenta.

A estrutura do texto é de modestas ambições, e a grande força do espetáculo vem da vivacidade do diálogo, que é particularmente brilhante na reconstituição - tanto em forma quanto em conteúdo - da primeira adolescência, cuja pitoresca reação aos fatos resulta encantadora. Esse, aliás, é o grande mérito do texto: uma visão crítica de como cada uma (são todas mulheres) expressa, com ligeiro e saudável exagero, o que acredita deva ser seu comportamento diante do acontecido. Só quando todas já disseram o que deviam ou não deviam ter dito, é que a morta pode partir para seu descanso definitivo; que todo o assunto seja tratado com tanto charme e graça é o que torna "As meninas" um acontecimento atraente e original. Que a graça com assunto tão "sério" jamais perca sua elegância e bom gosto é digno de todos os aplausos que na certa o espetáculo irá receber.

Direção de Amir Haddad aproveita elenco talentoso

A encenação é um invólucro mais do que satisfatório para o texto: o cenário de Cristina Novaes tem sua base em outro, o histórico feito por Gordon Craig para o "Hamlet" de Stanislavsky, porém com mais sucesso e propriedade do que este último alcançou. Os figurinos de Beth Filipecki são não só encantadores em si como expressivos do clima onírico da ação, a um tempo no auge da moda e totalmente atemporais, remetendo tudo para uma realidade imaginativa; e tudo é muito bem iluminado por Paulo César Medeiros, que também embarca na fantasia.

A direção de Amir Haddad capta bem o clima do texto, e aproveita as muitas possibilidades que lhe oferecia um elenco talentoso. O único senão é um uso exagerado de canções, que quebram a sequência da ação.

O elenco está exemplar: a morta, Vanessa Gerbelli, domina tudo com uma leveza e um encanto, unidos a um agudo senso de humor, mas isso não diminui o mérito das atuações de Sara Antunes e Patrícia Pinho, que estão ambas deliciosas como a filha da morta e sua melhor amiga, principalmente quando raciocinam para filosofar em bases inesperadas conclusões deliciosas. Analu Prestes está ótima nos exageros da mãe cuja preocupação é desempenhar seu papel em função do que poderão dizer os outros, enquanto Clarisse Derzié Luz se desdobra em vários personagens, principalmente na da falecida bisavó vidente. Um ótimo conjunto.

"As meninas" não tem só risos,e envolve a plateia em toda a sua gama de sentimentos. Assim sendo, é mais do que bem-vinda ao panorama teatral do Rio.


 

Por Maitê Proênça - O Globo, 07/07/2009
 

Lygia Fagundes Telles ficou muito brava comigo. Brava ao ponto de me chamar de ladra e afirmar que gostaria de subir ao palco de minha estreia teatral esta semana para fazer a acusação. Parece que desistiu, a noite correu suave, pungente, magnífica! Sobressaltos, só os incontáveis que emanavam do palco para o deleite da plateia.

Há cinco anos escrevi, junto com meu parceiro Luiz Carlos Góes, um esquete para uma primeira peça de minha autoria, a que demos o nome de As Meninas. A peça correu o Brasil, a Alemanha, Portugal. Foi um sucesso cujo ápice era a história de duas meninas falando sobre assuntos adultos no velório da mãe de uma delas. Crianças falam o que deve ser calado, e num contexto solene de tristeza, os diálogos resultavam cômicos:

- Queria que minha mãe morresse só um pouquinho pra eu ficar estranha assim como você.

- Posso dizer uma coisa, tia Consuelo? Eu pensei que morto ficasse abatido, mas você está quase bonita.

- Nos nascemos das barrigas de nossas mães, mas nossos irmãos vieram trazidos pela cegonha. Umas cegonhas pretas!

- Mamãe está tão séria!

- Também rir do que? Ela está morta, Rubi. Morto não ri, fica assim, sonhando...

Resolvi então escrever uma peça inteira com um velório como os que vejo por aí, com os parentes pranteando o morto e os amigos rindo pelos cantos, lembrando tudo que não deveriam, relaxando escondido pra conseguirem, depois, voltar a sofrer.

Quis um velório em festa, e colocamos quatro gerações de mulheres, inclusive as mortas, todas se utilizando do mesmo caixão pra voltar a viver um pouco. Ali não há limites entre a vida e a morte, quem deveria calar fala, e fala muito de tudo o que não poderia ser dito. As belas se autoelogiam sem modéstia, e as outras todas também, sem pudor. Não há pudores nesse velório. A história é triste mas é para rir. E sim, há um homem em cena, que não se vê, mas que está mais presente do que todos os personagens.

Nada a ter, portanto, com o romance de Lygia Fagundes Telles chamado "As Meninas". E tampouco com um romance anterior ao dela, o de Louise May Alcott, também denominado "As Meninas" ("Little Women"), ou com o célebre "As Meninas" de Velázquez, ou ainda, com os 67 desdobramentos cubistas elaborados por Pablo Picasso, lindamente expostos no Museu Picasso de Barcelona.

Será que Alcott, Velazquez e Picasso estão muito bravos com Lygia por lhes ter surrupiado o nome e usado em seu romance? Ou será que compreendem que este é de domínio público como seriam "O Coqueiro", "A Casa", "As Crianças", lindos títulos para quem quiser usar?

Contra minha vontade, mas por não querer aborrecer Lygia, pelo respeito e amor que tenho por ela, tentei alterar o nome de minha peça. Envie-lhe, por intermédio de nossa agente literária comum, os e-mails trocados para essa finalidade, com o MinC e com a empresa estatal que financia minhas Meninas. Por ali ela pode constatar que tentei a alteração de todas as formas, e exaustivamente, só para lhe agradar. Não foi possível. No Brasil, o que parece simples pode ser muito complicado, e será, sempre que houver burocracia envolvida.

O que deveria ser bem mais simples é o entendimento entre pessoas de boa vontade que só desejam seguir com sua arte, e oferecê-la ao público, este que está aí para acolher a todos os talentos.

Fica brava, não, Lygia. Te adoro!

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